quinta-feira, 20 de novembro de 2014

DEZEMBRO_calendário 2014


DEZEMBRO

Dezembro de December (décimo mês, de decem).

Os campos cheiram a humos que renascem dos despojos que vestiam as árvores cujas hastes nuas, recortando o horizonte, se erguem em preces como esqueletos à espera de nova personagem. Se as olharmos deitados no chão entre nós e o céu fica um teto feito de rede negra que nos aprisiona.

Os jarros, flores solitárias, também chamadas “lírios da paz”, despertaram e romperam a terra com o seu caule e folhagens verdes lisas. No seu cume desabrochará, alva em leque fechado, copo pontiagudo e macio uma espécie de representação da virtude aberta para o céu protegendo a perfeição fálica do amarelo sol que despertará no início do próximo ano. Apetece perguntar porque regressam as suas folhagens quando o sol deixa de queimar e aguardam a floração para quando o sol começa a deixar de ser tão raro.

Hirtos e mudos os jarros, ainda sem flor, vociferam: - Nós trazemos pedaços de sol das entranhas da terra em mudas melodias tóxicas que representam a paz.

- Porque é que a planta que simboliza a paz é tóxica? Questiona intrigado o inocente pardal.

- É para se defender dos predadores. Responde a astuta lagartixa dissimulada entre folhas e pedras que se confundem com a sua cor.

Porque se a paz não é só a ausência de guerras, devemos aos mais novos a aprendizagem de viver os conflitos em harmonização o que, em parte, está na natureza do jarro.

Em Dezembro, o derradeiro mês do calendário que marca o tamanho do espaço da dança da terra em redor do sol, quando tudo parece mais sombrio e adormecido, é o tempo de procurarmos o nosso oculto sol nos humos dos despojos da existência pretérita.

Tomemos como avisada a existência contraditória do “lírio da paz” pois somos semente e fruto de um imenso mistério.
 
 
 

 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

TRAVESSIA_Anotação I


TRAVESSIA anotações
As palavras são guardadoras das experiências de cada um. O que cada um guarda dentro delas será diferente e único, por isso, através delas, essa recriação das experiências, nesta travessia pode acrescentar ao mundo outros mundos.
Por outro lado, provavelmente, já estará tudo relatado mas, como em cada um há uma espécie de recomeço assim se transforma cada retorno numa repetição única.
Creio que há palavras que exalam imagens e soltam desenhos e também suponho que há desenhos e imagens que nos inundam de poesia e narrativas e essa alquimia talvez sejam as pontes possíveis entre a estepe da experiência e a floresta de ser. Haverá ainda para além da estepe e da floresta de cada um, o deserto e esse será o cenário que se avista em toda esta travessia e que só é alcançado quando nos encontramos com o seu fim.  
Mas há também um abismo entre aquilo que é e as palavras. Abismo entre a palavra dor e a dor indizível, entre a palavra amor e o amor indiscritível, entre a palavra vida e a vida indecifrável.

Anotação I
Finalmente a Cica revoluta que também é conhecida por sagu, palma-de-Santa Rita ou palma-de-Ramos revelou-se uma fémea.
Decorreram alguns anos desde que, ainda pequenina, foi plantada no local aonde está. No quintal, virada a nascente para que, em todas as estações do ano, possa usufruir de boa exposição solar. Inicialmente eram duas que, contíguas se impunham exibindo a sua côncava campânula circular verde sobre uma cilíndrica base atarracada ao chão. Duma delas, passado algum tempo, junto ao sopé do tronco brotou uma gémea. Na tentativa de aumentar a prole foi tentada a separação. Resultado, a que se retirou e replantou acabou por sucumbir mas do local amputado voltou a rebentar a gémea ainda com mais fulgor. Face às forças da natureza as gémeas foram crescendo digladiando-se para harmonizar as folhas que irrompiam de cada uma. Sempre que o emaranhado ficava mais caótico a poda tentava repor o corpo de cada uma. Uma delas viu-se forçada a crescer inclinada dado que a mais desenvolvida não abdicou da sua posição vertical.
Assim foram crescendo as gémeas e a solitária afastadas quanto baste para que entre as suas folhagens se possa passar. Do seu centro, hirtas iam saindo tenras folhas que à medida que cresciam ligeiramente se horizontalizavam empurrando as mais velhas em direção ao chão. Olhando-se para elas o seu corpo configura-se num circular leque que nos recorda muitas saias invertidas num desassombrado erotismo. 
Aparentemente o seu centro era igual. A mesma cor, o mesmo volume e a mesma textura aveludada. Nem sinais de fémea nem de macho, assim imberbes se foram passando os anos.
Recentemente, numa das gémeas, um invulgar inchaço exuberante irrompeu do seu centro como um ovo gigante pontiagudo coberto por folhagens aveludadas, quase plumagem em forma de sobrepostas labaredas que parecem suplicantes mãos erguidas aos céus. O ovo avolumou-se e prenhe começou a esgaçar. A plumagem alvoraçou-se e as labaredas coladas separam-se. Por essas nesgas ficaram visíveis, num tom rosado de salmão, quase maduras as suas crias. Estava prenhe e prestes a dar à luz os seus embriões. No seu papel de mãe, as folhas da Cica revoluta foram perdendo a verticalidade, foram-se abrindo para espaço darem às sementes que amadureciam no seu ventre.   
As suas folhas espinhosas irradiam proteção e formam em torno do seu centro uma auréola de verde forte. Nada é liso, tudo parece serenamente assanhado. Formas angulosas e pontiagudas alinham-se com um rigor que explode em cada folha. Esta planta tem um aspeto arbóreo, no entanto é considerada um arbusto. É uma das plantas mais antigas do mundo.
Contemplo com emoção os embriões em forma de sementes que a Cica tão bem protege. Aguardo a hora do parto quando preparados se sintam para cair à terra e nela encontrarem outra mãe que acolha o seu outro nascimento. Sinto-me responsável por eles e a minha ignorância tento colmatar para melhor corresponder à responsabilidade pelo seu futuro. Porque não estão localizadas num ambiente do seu reino uma vez que os seus progenitores agarrados estão a um jardim dominado por humanas conveniências não será fácil ali vingarem. Assim ali dependentes estão da humana intervenção. Por isso lhes devo proteção.