TRAVESSIA anotações
As palavras são guardadoras das experiências de cada um. O
que cada um guarda dentro delas será diferente e único, por isso, através
delas, essa recriação das experiências, nesta travessia pode acrescentar ao
mundo outros mundos.
Por outro lado, provavelmente, já estará tudo relatado mas,
como em cada um há uma espécie de recomeço assim se transforma cada retorno numa
repetição única.
Creio que há palavras que exalam imagens e soltam desenhos e
também suponho que há desenhos e imagens que nos inundam de poesia e narrativas
e essa alquimia talvez sejam as pontes possíveis entre a estepe da experiência
e a floresta de ser. Haverá ainda para além da estepe e da floresta de cada um,
o deserto e esse será o cenário que se avista em toda esta travessia e que só é
alcançado quando nos encontramos com o seu fim.
Mas há também um abismo entre aquilo que é e as palavras. Abismo
entre a palavra dor e a dor indizível, entre a palavra amor e o amor
indiscritível, entre a palavra vida e a vida indecifrável.
Anotação I
Finalmente a Cica revoluta que também é conhecida por
sagu, palma-de-Santa Rita ou palma-de-Ramos revelou-se uma fémea.
Decorreram alguns anos desde que, ainda pequenina, foi
plantada no local aonde está. No quintal, virada a nascente para que, em todas
as estações do ano, possa usufruir de boa exposição solar. Inicialmente eram
duas que, contíguas se impunham exibindo a sua côncava campânula circular verde
sobre uma cilíndrica base atarracada ao chão. Duma delas, passado algum tempo,
junto ao sopé do tronco brotou uma gémea. Na tentativa de aumentar a prole foi
tentada a separação. Resultado, a que se retirou e replantou acabou por
sucumbir mas do local amputado voltou a rebentar a gémea ainda com mais fulgor.
Face às forças da natureza as gémeas foram crescendo digladiando-se para
harmonizar as folhas que irrompiam de cada uma. Sempre que o emaranhado ficava
mais caótico a poda tentava repor o corpo de cada uma. Uma delas viu-se forçada
a crescer inclinada dado que a mais desenvolvida não abdicou da sua posição
vertical.
Assim foram crescendo as gémeas e a solitária afastadas
quanto baste para que entre as suas folhagens se possa passar. Do seu centro,
hirtas iam saindo tenras folhas que à medida que cresciam ligeiramente se
horizontalizavam empurrando as mais velhas em direção ao chão. Olhando-se para
elas o seu corpo configura-se num circular leque que nos recorda muitas saias
invertidas num desassombrado erotismo.
Aparentemente o seu centro era igual. A mesma cor, o mesmo
volume e a mesma textura aveludada. Nem sinais de fémea nem de macho, assim
imberbes se foram passando os anos.
Recentemente, numa das gémeas, um invulgar inchaço exuberante
irrompeu do seu centro como um ovo gigante pontiagudo coberto por folhagens
aveludadas, quase plumagem em forma de sobrepostas labaredas que parecem
suplicantes mãos erguidas aos céus. O ovo avolumou-se e prenhe começou a
esgaçar. A plumagem alvoraçou-se e as labaredas coladas separam-se. Por essas
nesgas ficaram visíveis, num tom rosado de salmão, quase maduras as suas crias.
Estava prenhe e prestes a dar à luz os seus embriões. No seu papel de mãe, as
folhas da Cica revoluta foram perdendo a verticalidade, foram-se abrindo para
espaço darem às sementes que amadureciam no seu ventre.
As suas folhas espinhosas irradiam proteção e formam em torno
do seu centro uma auréola de verde forte. Nada é liso, tudo parece serenamente
assanhado. Formas angulosas e pontiagudas alinham-se com um rigor que explode
em cada folha. Esta planta tem um aspeto arbóreo, no entanto é
considerada um arbusto. É uma
das plantas mais antigas do mundo.
Contemplo com emoção os embriões
em forma de sementes que a Cica tão bem protege. Aguardo a hora do parto quando
preparados se sintam para cair à terra e nela encontrarem outra mãe que acolha
o seu outro nascimento. Sinto-me responsável por eles e a minha ignorância
tento colmatar para melhor corresponder à responsabilidade pelo seu futuro.
Porque não estão localizadas num ambiente do seu reino uma vez que os seus
progenitores agarrados estão a um jardim dominado por humanas conveniências não
será fácil ali vingarem. Assim ali dependentes estão da humana intervenção. Por
isso lhes devo proteção.