segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Calendário 2014_JANEIRO



Fastos

 Tábuas cronológicas dos antigos romanos.

 Registos públicos onde se consignavam os atos e acontecimentos memoráveis.

 [Figurado] A história; anais.

2014

Calendário

Recordação da viagem a Sines

Fasti, -orum (m. pl.), inicialmente estes Fasti marcavam apenas os dias festivos dedicados aos deuses mitológicos. Na obra de Ovídio, entretanto, o calendário assume uma característica mais abrangente. Nele serão anexadas também datas nacionais, isto é, datas festivas que o Senado incluiu no calendário. Deste modo, os Fastos vão abarcar tanto os registros das festas religiosas quanto das festas cívicas, constituindo-se num calendário poético religioso-romano. A obra poética de Ovídeo ficou incompleta só tem 6 volumes correspondentes a 6 meses.

Calendae era o nome dado pelos romanos ao primeiro dia de cada mês e significa “dia de pagar as contas” que origina calendário.

Um fastos ou calendário é uma espécie de mapa que condensa a respiração dos seres, sincronizada com os duplos movimentos da terra, dança sedutora que acolhe os sémenes solares de luz e calor gerando assim, nos seus territórios, os dias e as noites e as estações desse acasalamento de ciclo anual. Nessa dança, a gravidade da terra arrasta com ela a lua que povoa as noites de mistério.

Longe de nós ficam os deuses e as figuras que, em Roma, consideravam ilustres. Serviram-nos apenas como ponto de partida, para divagarmos numa mistura aleatória de pretextos ter uma recordação da viagem a Sines em 2013

É também um convite para fazer a sua “tábua” com os acontecimentos que considere dignos de registo com os FASTOS, mais do que os nefastos, que entender memoráveis em 2014.

Um calendário é uma oferta de antecipação do futuro sugerindo que, com esta prolepse possamos domar, um pouco, a fera que cada um tem dentro si.

 

JANEIRO

O nome atual vem de Januarius e é uma homenagem ao deus Jano, o senhor dos solstícios, encarregue de iniciar o inverno e o verão. Por outro lado o nome do deus Jano vem de ianitor que quer dizer porteiro, aquele que comanda as portas dos ciclos de tempo. Segundo a mitologia romana e também etrusca, Jano é o deus dos inícios, das decisões e escolhas.

As representações de Jano são geralmente com dupla face orientadas em direções opostas. Simbolizam o passado e o futuro e o dualismo relativo de todas as coisas. Jano preside a tudo o que se abre, é o deus tutelar de todos os começos; rege ainda tudo aquilo que regressa ou que se fecha, sendo patrono de todos os finais.

Posto isto, reconheço que uma porta tem uma amplitude de existência sobre a qual deveríamos refletir. As suas duas faces permitem-lhe ter acesso simultâneo ao que lhes é interior e ao que lhes está de fora, ao que sai e ao que entra. Podem ainda mudar o ângulo de visão e usufruir das múltiplas maneiras do que se passa à sua volta. Por tudo isto invejo as portas.

Janeiro convida para olharmos as questões de todos os lados e mede a espessura entre o pretérito e o futuro.

A portada da janela estava entre aberta. Tentei perscrutar o que estava ao seu alcance. Apesar de presa à parede confirmei a sua graciosa mobilidade com o movimento que as dobradiças não lhe negam. Sabia que a olhava com outros olhos e senti na textura do seu corpo de madeira a alegria do meu reconhecimento.

Reforcei essa empatia dizendo-lhe: - Graças ao significado da origem do nome do deus Jano deixas-te de ser apenas uma portada para seres o símbolo da impossibilidade possível de se tentar alcançar a coerência contemplando em direções opostas.
 
 

domingo, 10 de novembro de 2013

RELATO VII Recordação da viagem a Sines


RELATO VII
Recordação da viagem a Sines
Costumo trazer das viagens mais longínquas o calendário de parede que me ajudará a situar no tempo, a medir a sua espessura e o seu consumo ao longo do ano seguinte. Como em 2013 não houve, nem vai haver, viagem para fora deste minúsculo retângulo, muro do oceano e das terras de Espanha terei eu, para 2014, de o fazer.

Calendae era o nome dado pelos romanos ao primeiro dia de cada mês e significa “dia de pagar as contas” – daí a origem da palavra calendário, “livro de contas”.
Um calendário é uma espécie de mapa que condensa a respiração dos seres, sincronizada com os duplos movimentos da terra, dança sedutora que acolhe os sémenes solares de luz e calor gerando assim, nos seus territórios, os dias e as noites e as estações desse acasalamento de ciclo anual. Nessa dança, a gravidade da terra arrasta com ela a lua que povoa as noites de mistério.

O calendário também poderá ser um fosco espelho do tempo e a arte é a maneira de o tentarmos desembaciar para que, cada um desvende o “sentimento de si”.
As artes serão manufaturas de eus, tradutoras individuais de plurais perplexidades datadas pelo tingimento dos tempos. Ou serão espelho retrovisor de dupla face que nos oferece a contagem crescente e decrescente do tempo?

Olho para o Taj Mahal do calendário de 2013 que trouxe da Índia. Está à minha frente enquanto deambulo entre o tempo e arte. Cada página tem dois meses e a imagem é sempre a do Taj Mahal, mas algo diferente. São imagens que capturam o tempo a passar por ele nas diversas estações do ano. Em todas as fotografias ele corporiza na sua alva cor as “vozes do silêncio” que nos interrogam brutalmente sobre tudo. Desvio dele o olhar que refugio no teclado para aguentar a aflição e o peso das interrogações com que me confronta.
Desconcentrada e cansada tentei afastar tamanha intromissão. Em voz interior disse ao calendário: - Já estás quase a terminar a tua função. Em breve o teu tempo ficará pretérito e repousarás no armário das recordações.
Creio que estremeceu mas não estou certa.   

Falemos então de futuro. Aos romanos se devem também os nomes dos meses que atualmente se usam para nos situarmos no tempo. Num regresso às origens, tomarei em cada mês, a origem do seu nome como ponto de partida para tentar fazer o calendário de 2014. Assim, também irei ter uma recordação da viagem a Sines.
Enquanto deambulo pela questão do tempo e do calendário do próximo futuro, num canto da sala, uma aranha perspicaz instalada na sua teia espera o tempo de um inseto nela ficar presa. A teia é o engenho com que aranha doma o tempo da sua sobrevivência. A aranha não corre contra o tempo, a aranha constrói a sua teia e, quieta, espera que o tempo lhe traga uma presa. É o natural conflito de existir. A eterna guerra que, mesmo no silêncio da aranha, mantem o destino contínuo em nós, desta natureza. A miragem da paz é necessária para conseguimos viver o conflito da existência.

Ela olha para mim com estranheza porque não entende porque é que a questão do tempo constitui motivo para eu gastar tempo a fazer um calendário. Confesso que não lhe sei responder e não sei se alguém terá resposta para esta aranha.
Eu fito-a e sinto-me na obrigação de ripostar com algum argumento. Coloque-lhe a hipótese de que o nosso calendário poderá ser a nossa teia. Ela parece ter ficado pensativa e adormeceu.

Abri as janelas para renovar o ar e também para permitir que algum inseto circule e entre no templo do tempo daquela aranha. Algum inseto vai finar naquela teia e assim deixará de me incomodar. Crueldades gritam-me as paredes desconcertadas com o que escrevo. Olhei-as com a doçura de que os meus olhos são capazes e sussurrei-lhes baixinho: São apenas e só conflito de interesses, é a natureza em nós.
Por favor não estraguem as teias.

Isabel D. R. Silva

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Sines Viagem 2013 RELATO VI


VIAGEM 2013 - RELATO VI
Sinais de Sines

Os sinais só dizem mesmo o que lhes é atribuído. É uma geométria mensagem univoca.

Mas as palavras não se deixam encurralar assim.

Podemos entender a vida como se de uma grande viagem se tratasse. Viajar poderá ser procurar-se. Escrever as pequenas viagens poderá ser encontrar-se aos poucos.

Será que estaremos aqui com o único propósito de encontrar a razão porque aqui estamos?

Escrever a viagem pode ser como um desenho invisível revelado em imagens virtuais que poderão, ou não, fluir e florescer na atenção de quem descodificar os caracteres e a sequência dos seus acasalamentos. As palavras, às vezes, doem e ferem quando nos fogem as certas, numa hemorragia que lhes sangra a alma e o desenho codificado fica oco e mudo a flutuar.

Por isso a tentação da imagem é grande. Mas fotografar exige tanto tempo e atenção como encontrar as palavras banais que, quando unidas, se tornam únicas.

Será redundante acrescentar palavras a uma imagem ou vice-versa. Uma fotografia não vale nem menos nem mais do que as palavras, porque ela mesma, se for mais do que um registo mecânico e descritivo, tal como as palavras, se bastará.

E assim, no relato VI desta viagem me calo, para que, no silêncio absoluto, se oiça a força dos sinais de Sines.

 

 
Isabel D. R. Silva

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

VIAGEM 2013 Relato V


VIAGEM 2013- Relato V
Continuando por Sines

Uma fotografia de viagem pode ser o refúgio do tempo que nos foge. Dispara-se e aprisiona-se aquilo que primeiro nos atrai. Ludibriamos a falta de tempo e, parte daquele sítio já está connosco, sem suportarmos a exaustão da atenção. É tentador mas ainda nos retira mais tempo ao pouco que temos e, por isso, deixa-nos uns resíduos de vazios atafulhados de arquivos que, provavelmente, não teremos tempo de rever.
Isto porque fotografar exigiria ainda mais tempo a acrescentar ao da viagem.
Escrever sobre as experiências de viajar obriga-nos a pensar sobre ela e assim, nesse tempo de procurar as palavras, dissolvemos a superfície da descrição e ganhamos mais ser. As coisas entram e revolvem-se com o que já cá tínhamos e emergem outras mais que, até a nós, nos surpreendem. As palavras ajudam-nos nessa revelação.
Difíceis de encontrar, domar e encadear impulsionam-nos nessa ingreme escalada e, nesse processo, ficamos aprisionados pela liberdade.
Sem a precisão fotográfica, como se de um desenho se tratasse, tudo fica à mercê da imperfeição da nossa síntese, tudo depende do que arbitrariamente se decide como traços essenciais. Tudo o que não interessa à nossa atenção não entra e pronto porque vemos só aquilo que queremos. Vivemo-nos através das palavras e assim podemos continuar a viajar sem sair daqui.
Sines é rasgada por corredores largos cheios de paralelas veias metálicas. Por elas circulam líquidos viscosos e inflamáveis que ligam o cabo de Sines às fábricas onde serão transformados. Veem dos navios num estado de lastro denso de breu. As moléculas cumprem um circuito de alquimias e, assim separadas, vão entrar em cadeias de transfiguração. Entre as dunas da costa do norte e as falésias do sul atravessam o cabo e em silêncio circulam.
As veias metálicas sobem a encosta alinhadas como cordas de violoncelo. Seguem aconchegadas à superfície ou abrigadas em socalcos que compensam os desníveis. Nada pode ficar no seu caminho como se fossem comboios invisíveis.
A seguir à subida da encosta, no cabo de Sines, as veias metálicas servem de fronteira ao Bairro Amílcar Cabral como se a arrumação urbana tivesse um sótão da cidade onde se acondiciona o mobiliário que não condiz com a restante decoração.
Entre estas tubagens e a Estrada da Costa do Norte fica uma língua de terra, ligeiro promontório, onde o Farol, todas as noites, bombardeia e rasga a escuridão com rastos circulares que esmorecem nos céus. Nesse troço as tubagens ficam mais ou menos anónimos voltando a integrar a paisagem acessível quando se aproximam da rotunda de entrada em Sines. A Estrada da Costa do Norte faz-lhes uma travessia aérea em viaduto quase rasante e daí se pode dominar de onde veem e para onde vão. Podemos segui-los tomando a direção da Ribeira dos Moinhos e, por entre pinhais e casas dispersas, chegar ao terreiro da Ermida de S. Bartolomeu.
Esta Ermida foi construída pelos frades da Ordem de Santiago cumprindo, admite-se, ordens de Dom Pedro I (século XIV). Destino de peregrinação, com destaque para os artesãos de curtumes, uma vez que Bartolomeu é o patrono dos ofícios que lidam com objetos cortantes. Desse tipo de peregrinação são testemunho as pedras de amolar incrustadas nas paredes do edifício.

Em 1517, de visita a Sines, Dom Jorge de Lencastre, comendador da Ordem de Santiago, passa pela ermida e determina que se proceda à recuperação da cobertura. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o edifício passa para a posse de particulares e entra em ruína.

Desde os anos 70 do século XX que o corredor de tubagens lhe faz companhia. Em troca dessa invasão territorial, nos anos 80, foi novamente recuperada. Não ficaria bem à indústria da modernidade conviver com edifício sagrado em ruínas. Consciências tranquilizadas, o seu destino de desamparo, não a abandonou. Solitária, a Ermida passou a ter por companhia mais próxima as tubagens metálicas que, daquele ponto, tanto parecem cordas de guitarra como vísceras de animal gigante esventrado.

Se seguirmos, a pé, o seu percurso iremos vislumbrar de um plano rasante as duas cidadelas gigantes onde desaguam. Uma mais próxima à esquerda e a outra mais distante dali à nossa direita.

Para apreciarmos estas cidadelas devemos deixar cair a noite. Aí virão luzes, muitas luzes que darão o contorno e extensão daqueles volumes. Pelo emaranhado de tubagens e caldeiras e pelos fumos e chamas das chaminés adivinhamos a vida das moléculas extraídas do lastro negro de breu.

Alguns produtos extraídos voltarão a fazer o caminho inverso para embarcarem noutros navios. Voltarão, pela última vez a passar junto à Ermida de S. Bartolomeu. Outras seguirão o seu destino incorporando objetos de plástico, submersas em líquidos ou planando em gazes. Entrarão numa espiral volátil que as libertará na atmosfera e, talvez, também da gravidade terreste.

O lastro negro de breu que chegou a si por milhares de anos nas entranhas da terra aporta em Sines, entra nestas veias como quem entra na ante camara do extermínio.

E assim, em Sines, a Ermida cujo patrono Bartolomeu protegia os artesãos que usavam objetos cortantes também acolhe os que, de forma tão invisível, continuam os ofícios de (re) finar.

Isabel D. R. Silva

domingo, 27 de outubro de 2013

Sines - Viagem em 2013 Relato IV


Viagem em 2013-Relato IV

Ainda em Sines

No Largo do Muro da Praia tudo está leve, maduro e espesso, em lugares assim os nossos sentidos correm o risco de ficar arrasados.

A ele se pode chegar de várias maneiras, mas aquela que mais me explode nos olhos é a que desce do mercado e desemboca nesse largo. Essa descida ligeiramente ondulada e estreita, definida pelo alinhamento dos edifícios, guarda lá ao fundo uma janela esguia que nos vai pulverizando de espaço. À medida que vamos descendo a janela vai-se alargando e abrindo e dá-nos o mar.

Aí o mar fica enquadrado numa moldura que tem do lado esquerdo as muralhas do castelo, num plano ligeiramente mais afastado, ao qual se sobrepõe o volume branco da igreja matriz. Esse ângulo é fechado pela calçada do largo do castelo, Largo do poeta Bocage, que desagua rente à entrada lateral da Capela da Misericórdia. Essa moldura fica completa, do lado direito, com a fachada do edifício do antigo hospital, atual Centro Cultural Emmerico Nunes, fronteiriço à Igreja Matriz.

De dentro das muralhas do castelo, voando em bandos, ouvem-se uns guinchos negros. Avisam os distraídos que, este largo é lugar onde coabitam, frente a frente, a fé e a resistência.

Neste Largo, entre nós e o mar apenas um muro rasteiro sem arestas de tonalidade amarela amena se interpõe. É a esse muro que, provavelmente se deve o nome de “Muro da Praia”. Essa linha horizontal, ligeiramente quente, ajuda a realçar o aveludado frio que do mar se inala. Pela manhã daí chegam os odores eróticos das descargas do peixe, intensos paladares íntimos que recordam sons de entranhas húmidas.

Do Largo até à praia há uma sinuosa e ondulante descida que nos vai dando a saborear, alternadamente, o oeste vivo e irrequieto e o nascente que guarda os silêncios, ambos encostados à baia formada pelo cabo. Por instantes, na zona de transição entre as duas direções fica, mais ou menos, um sul que é de esperança porque avança mar a dentro, a perder de vista, e solto da costa.

Na maior parte dos dias, lá ao longe, rematam o horizonte, uns vultos longitudinais que entram pelo mar e flutuam no céu, corpos inanimados da Serra do Cercal e do Cabo Sardão que, em planos diferentes se conjugam num contínuo, prolongando a grande baía que nasce neste Largo do Muro da Praia.

As muralhas do castelo coroam este pequeno planalto fronteiriço ao mar e, sempre que as aprisiono na minha atenção, parece que as suas pedras respiram em mim tudo o que já presenciaram. Guardam a cor da terra na sua alma e, extremamente serenas recebem a erosão dos tempos. Estas são muralhas que guardam o passado e, de certa forma, nos aconchegam e protegem da aflição do futuro.

Na falésia que sustenta as muralhas, quando o vento sul anuncia chuva, ondulam os canaviais em rituais fúnebres, salvíficos e redentores, que no negrume da tempestade anseiam sempre pelo regresso do sol. Por entre elas esgueiram-se os rochedos negros vulcânicos do morro e nalgumas das suas brechas vivem quase suspensos agaves e aloés.

No sopé do morro do Largo do Muro da Praia unem-se os princípios e os fins das terras e das águas numa aliança de materiais e temperaturas que acarinham e acolhem o olhar de todos os que aqui buscam estar atentos. São cada vez menos. Desde que estas pedras, que se conjugam em calçadas, conhecem os meus passos e suportam o meu peso muita gente se foi embora e por aqui deixou de passar. Estão leves e vazias, as novas pedras, porque levantaram e levaram as polidas pelas memórias.

- Será que as miragens de desenvolvimento e do progresso que têm explodido em fogo-de-artifício inundaram e afogaram de ilusões as pessoas? Interrogam-se as gaivotas no areal da praia.

- Cuidar de edificações, esquecendo as pessoas, sempre foi o prenúncio do princípio do fim de sonhos imperiais. Gritam outras gaivotas poisadas no torreão do castelo.

As fachadas dos monumentos do regime que circundam o local cheiram a miragens de imortalidade e vomitam falsas ousadias de futuro. Elas também recebem, no silêncio cortante, os restos dos sons metálicos dos sinos da Igreja Matriz que marcam as horas desabitadas. Não há burburinho humano que os abafe. Apenas um gemido trémulo e amedrontado das águas órfãs, lá em baixo, a tentarem refugiar-se no areal da praia.

Olho em redor, o Outono aproxima-se.

Esvoaça um abandono que morde e inunda tudo.

Um sítio assim merece que as pessoas não o abandonem.    

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Viagem em 2013-Relato III

Ainda em Sines

Encontrei no facebook (porto de abrigo para quando fugimos do mundo e em simultâneo desejamos que essa fuga seja narrada e vista pelo universo inteiro) uma foto do navio Infante Dom Henrique, em Sines. Nem de propósito este estar a ser o sítio da minha viagem deste ano.

Este navio foi aqui aprisionado num lago e condenado a servir de unidade hoteleira para o grande polo industrial espectado para Sines nos anos 70. Nestas crónicas o recurso à fotografia estava posto de parte para não prejudicar o estado de atenção. Mas, neste caso, como não fui eu que a fiz vou usá-la como uma espécie de espólio (recuerdo) desta viagem.


Não resisti e fui procurar a história deste palacete metálico flutuante com o qual me cruzei em 1980. Sabia do seu trabalho de carregar “carne (jovem) para canhão” na guerra colonial, conheci-o como respeitável mas decadente, Navio-Hotel e, de vez em quando, ao passar pelo lado sul do cabo de Sines sempre tateio o local que ocupou.

Nasceu como Infante Dom Henrique nos estaleiros da Société Anonyme John Cockerill, na Bélgica, em 1961 tendo como primeiro destino fazer a ligação entre o continente e as colónias de África de uma classe média reduzida mas em ascensão. Sonho inicial destruído pela guerra colonial, pelo que, um segundo destino o incorporou na frota sinistra que ligou tantos e inúteis sofrimentos e também algumas desvairadas ânsias de glória, porque as há sempre.
Terminada essa tormenta, maior do que a dos piores mares, depois do 25 de Abril veio o exílio em Sines à espera de outros guerreiros agora por causa do ouro negro. Outro sonho adiado.
Recordo, desse exílio (1977 a 1986), o espanto que as suas instalações provocavam. Não havia em Sines nenhum local com o seu requinte, sobretudo imaginando como seriam quando novo. Parecia um palacete flutuante. Lembro-me de deambular pelos salões, capela, casa mortuária, piscinas, camarotes, sala de comando e de descer até à casa das máquinas. Algumas vezes fui ao bar, apenas tomar café ou tentar preparar aulas, mas a primeira vez que lá fui e que o visitei foi com uma turma do 6º ano no ano lectivo 1980/81.
Penso que a propósito da questão “ver não é só olhar”, quando pedi aos alunos sugestões para aulas no exterior alguém sugeriu o Infante Dom Henrique. Desconhecendo tudo daquela terra fiquei com muitas dúvidas e, por isso, sugeri que se quisessem tratassem de fazer o contato e de organizar a uma visita, convencida de que nada iria acontecer e os alunos acabariam por ir para onde eu os tencionava levar. Convinha-me um local perto da escola para olharem com olhos de ver (observar/analisar e fazer registos) de algumas coisas em que talvez nunca tivessem reparado.
Agora percebo que foi a sua curiosidade que lhes deu a iniciativa de que eu não estava à espera. Na aula seguinte tudo combinado, dia e hora. Fui completamente guiada por eles. Atravessámos a então vila e, rapidamente chegámos à zona de povoamento disperso onde pequenas hortas conviviam com precárias oficinas e alojamentos em rulotes recentemente instalados por pessoas vindas das agora ex-colónias. Passámos pela serração do Sr Farto e junto à mesma um estaleiro exibia o esqueleto de um barco em construção. Arcos com ondulação suave geometricamente simétricos na dureza da madeira. Macios, fortes e carregados de uma delicadeza quase impossível. Os moldes com as tabelas necessárias aos cortes das peças que encaixam e fazem o barco. As fórmulas estavam ocultas e tudo parecia magia. Aprendi assim com os mestres e esses mestres também tinham aprendido com outros, explicava o carpinteiro naval. Sabedoria do tempo em que a escola era nas oficinas, talvez tenha eu pensado.
Os alunos mostravam-me a sua terra. Perguntei se ainda faltava muito e eles sempre respondiam que era já ali. Entrámos num planalto descampado que contornava uma imensa cratera que só terminava no mar.
Isto dantes a terra ia até quase à beira do mar mas agora tiram daqui a pedra para a construção dos portos, esclareciam-me eles apontando para os molhes que avançavam mar a dentro e para os camiões gigantes que num rugido estranho as transportavam dia e noite.
Seguíamos por trilhos e de Infante Dom Henrique não havia vista que alcançasse. Ouviu-se uma sirene. Perguntei o que era aquilo. É para avisar que vão fazer um rebentamento na pedreira, disseram eles com ar impávido. Tentei controlar a minha aflição e questionar como era para perceber se estaríamos em segurança. Resolvi impor um ritmo mais rápido para sair dali argumentando que estávamos a esgotar o tempo da visita no caminho.
Cheguei ao Infante com os estrondos e ecos dos rebentamentos da exploração da pedreira. Ao descer a rampa de terra vermelha o volume do personagem metálico ocupava cada vez mais toda a linha do horizonte. Os alunos (na sua grande maioria) e eu estávamos pela primeira vez a entrar num navio.
Convido os mais curiosos a verem imagens em: http://www.youtube.com/watch?v=I7Xkn302KTg
Este personagem metálico abandonou Sines e o seu patrono, Infante Dom Henrique, fundador dos descobrimentos para incorporar a designação de Vasco da Gama que, por coincidência parece que nasceu nesta vila. Com grandes obras de restauro e inovação, passou a exibir o nome do navegador que conseguiu chegar às Índias e baralhar o negócio dos mercadores terrestres.
Enfim a glória! Mas estas glórias, do navio e a dos mercados perturbados, também se revelaram efémeras e vãs.
E, para terminar a cronologia deste navio, registe-se que como ante câmara do seu fim foi rebatizado de Seawind Crown. Remetendo-nos para a simbiose de mar, onda, vaga, vento e coroa e com essa designação, em 2004, este palacete metálico foi desmantelado.

Este ano ao encontrar, em Sines e no facebook, a imagem do navio Infante Dom Henrique/Vasco da Gama/Seawind Crown permitiu-me, com os cacos da memória, refazer a viagem com os meus alunos em 1980 e voltar hoje ao local do seu exílio.

Hoje, o lugar de exílio do Infante Dom Henrique foi engolido pelas estruturas do porto de contentores e porto graneleiro onde repousam as colinas negras formadas por minúsculos grãos vindos das entranhas da terra. Tapetes de bocas contínuas aqui os engolem e transportam, rolando até à central termoelétrica onde se transformam numa energia invisível que nos dá luz. Lá na central ardem em silêncio enquanto as crianças chapinham, correm e sentem a ilusão do domínio das águas de S. Torpes. Até chegar aqui há toneladas de betão e de estruturas metálicas que conformam uma outra cidade que repousa sobre o mar.
A cratera da pedreira avançou terra a dentro deixando o mar ainda mais longe e lá muito em baixo. A paisagem que se avista desse ponto mostra como se entrelaçam a terra e o mar com brinquedos de uma escala da terra dos gigantes. Metálicas gruas esqueletos de corpos hirtas que beijam o céu, massas cilíndricas compactam o chão mas parecem emergir do centro da terra, contentores com que vão encher sótãos de recordações e vazadouros de lixo.
Tudo isto resulta num esbelto bordado com fios de mar que se entrelaçam com colinas de pedra onde se abrigam gigantes navios repletos de ouro negro, gás natural, carvão e contentores.
Em Sines, quando o sol se põe, a costa do norte aprisiona os últimos raios num adormecer avermelhado, o sul fica cercado pelas luzes frias das cidades metálicas e de betão.
Sines parece uma ilha fortificada.
A norte a escuridão encobre o areal despido e ficam os ecos dos rugidos do mar, felino animal indomável num cio perpétuo.
Na sequência das noites, quando o sol inunda de luz, todas as estruturas metálicas do sul, no seu brilho, ouve-se um futuro de ferrugem.     

Por agora, estejamos atentos para podermos ser.

 

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Viagem em 2013-Relato II


Viagem em 2013-Relato II
Ainda em Sines

Um passeio por caminhos mais laterais, sem sinalização e afastado dos acessos às praias.
Atrás das catedrais metálicas onde se transforma o outo negro das guerras e que faz andar o mundo, incógnita na paisagem, irrompem as ruínas tímidas de uma casa.
O seu abandonado inunda-nos. Restos de arestas, encontro de paredes incompletas que gemem no silêncio e arrepiam tanto. Pressente-te a ausência, pressente-se o vazio, pressente-se não haver futuro. É uma avalanche de passado, um cabouco em construção para acolher o que caminha para acabar. Pelo que resta das janelas escorrem os olhares ausentes, os sorrisos e as lágrimas invisíveis  de vidas que agora as inundam de nada.
Mais um verão em que o sol as esmaga de luz, calor e solidão.
São ruínas de circuitos anónimos que pronunciam o destino de todas as respirações. Cada uma delas povoa a paisagem como um monumento que, na planície ou nas dunas, neste cabo do Alentejo litoral, comemora vidas.
Há algumas paredes nuas e abertas ao céu, outras ainda suportam o telhado. Ao fim da tarde há um hálito carregado de negro que configura as ausências das janelas e portas. Quando as fixamos são como olhos cegos que nos fixam e interrogam e, pela porta, podemos ver o hálito dos seus gritos.
Atrás das ruínas, o cenário meio encoberto pelo movimento acidentado dos terrenos, as torres das catedrais metálicas uivam e brilham.
Ficar atento é testemunhar e enfrentar o destino de todas as coisas que, pela rotina, achamos que o são para sempre.
Uma abelha pousa numa flor e esta treme e baloiça com este contacto. A flor vive nas ruínas e a abelha visita-a enquanto existir. Outras flores e outras abelhas virão e as ruínas continuarão o seu processo de dissolução até que já nenhum olhar as possa aprisionar. Acabarão assim lentamente o seu dever de testemunhar.
Virão as estações húmidas e frias e com elas o desmoronar dos vestígios dos tempos que queimam e apagam todos os abrigos humanos.
Regresso a casa acalmando o olhar no mar, muro aberto e sem sinais aparentes de dissolução. Entro na estrada de terra batida onde eras e canaviais começam a engolir outras casas vazias. De seguida surgem os arcos do meu abrigo, do meu beco, da minha rua, do nosso lugar minúsculo universo no mundo imenso. Somos uma origem e essa está sempre no nosso destino.
Quem será que algum dia, numa qualquer viagem, testemunhará esta casa vazia e em ruínas. A casa ouviu-me e interroga-me: Que ânsia de progresso te desobriga do passado, te liberta de locais de memórias e te impulsiona para, um dia, me abandonares?
Agastada repliquei-lhe: E porque teremos de nos sentir prisioneiros de paredes que só fazem sentido quando alguém lho atribui.
- Tu é que levantas-te a questão…. eu, por mim, não tenho esses problemas. Esclareceu com ar irónico.
Ficar atento é ser.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Viagem em 2013 - Relato 1 - SINES


Viagem em 2013 - Tempos de crise - Relato 1
Viagem no pequeno rectângulo do extremo ocidental da Península Ibérica. Fica numa das muitas pontas do mundo, este sítio, é um beco ladeado por oceanos.
Viajar é sempre sair do nosso beco e tentar chegar a horizontes onde o chão fique mais longe das trevas. Viajar é uma forma de nos encontrarmos fingindo que fugimos de nós mesmos. Tentar sair permite ver de outro ângulo e, com sorte, ver de fora.
Viajar é ir ao encontro da imensidão do mundo. Viajar é situar nessa imensidão o infinito que está dentro de nós. Quanto mais conseguimos estar atentos aos mundos dos outros maior se torna a imensidão do mundo em nós e o infinito que nos habita fica ainda maior.

Mesmo quando atravessamos oceanos e ficamos a muitas milhas do nosso sítio nós somos sempre o nosso beco, a nossa rua o nosso lugar minúsculo universo no mundo imenso. Somos uma origem e essa está sempre no nosso destino.
Por isso os depoimentos deste ano são sobre a viagem ao lugar das origens local do coração da liberdade. Ficar atento é ser. E isso é mais possível quando nada nos parece desconhecido e podemos apalpar a memória. A surpresa é que afinal há muito para descobrir quando decidimos viajar sem sair daqui.
Sem a tentação de aprisionar a experiência através da máquina fotográfica pode viver-se a libertação pela magia da palavra.

Em Sines
Pegar no abandono de uma folha de magnólia seca, gigante lágrima castanha doirada lustrosa, fechar os olhos e deixar que a ausência de luz permita sentir só os gritos de a esmigalhar entre os dedos acústicos. Estilhaços de um modo de conhecer e amar o som que entra pela pele, rebenta nos ouvidos e nos revela a outra face do precioso silêncio que sempre nos escapa. Ouvir o silêncio na visibilidade da escuridão e na cegueira da luz. Caminhar e sentir os pés imaginarem as folhagens ásperas ficarem para trás estilhaçadas sobre o seu peso. Sentir os cheiros estalarem e escorrerem no ar que entra pelas narinas.

Ouvir no silêncio da noite, os ecos das ondas a rebentar no areal da Costa do Norte como
os cânticos dos pinhais que ondulam nas encostas dos dias quentes da nossa infância. Ardem alguns, agora negros de silêncio que me chegam em imagens entre intervalos publicitários e notícias sobre armas químicas e máscaras de primaveras num Oriente médio.
Misturas de infância e maturidade.
Porque, para ouvir tudo, é preciso silêncio que permite observar e pensar o tempo.
Isabel Silva