RELATO VII
Recordação da viagem a Sines
Costumo trazer das viagens mais
longínquas o calendário de parede que me ajudará a situar no tempo, a medir a
sua espessura e o seu consumo ao longo do ano seguinte. Como em 2013 não houve,
nem vai haver, viagem para fora deste minúsculo retângulo, muro do oceano e das
terras de Espanha terei eu, para 2014, de o fazer.
Calendae era o nome dado pelos romanos ao primeiro dia de cada mês
e significa “dia de pagar as contas” – daí a origem da palavra calendário,
“livro de contas”.
Um calendário é uma espécie de
mapa que condensa a respiração dos seres, sincronizada com os duplos movimentos
da terra, dança sedutora que acolhe os sémenes solares de luz e calor gerando assim,
nos seus territórios, os dias e as noites e as estações desse acasalamento de
ciclo anual. Nessa dança, a gravidade da terra arrasta com ela a lua que povoa
as noites de mistério.
O calendário também poderá ser um
fosco espelho do tempo e a arte é a maneira de o tentarmos desembaciar para que,
cada um desvende o “sentimento de si”.
As artes serão manufaturas de eus,
tradutoras individuais de plurais perplexidades datadas pelo tingimento dos
tempos. Ou serão espelho retrovisor de dupla face que nos oferece a contagem
crescente e decrescente do tempo?
Olho para o Taj Mahal do calendário
de 2013 que trouxe da Índia. Está à minha frente enquanto deambulo entre o
tempo e arte. Cada página tem dois meses e a imagem é sempre a do Taj Mahal, mas algo diferente.
São imagens que capturam o tempo a passar por ele nas diversas estações do ano.
Em todas as fotografias ele corporiza na sua alva cor as “vozes do silêncio”
que nos interrogam brutalmente sobre tudo. Desvio dele o olhar que refugio no
teclado para aguentar a aflição e o peso das interrogações com que me confronta.
Desconcentrada e cansada tentei afastar tamanha intromissão.
Em voz interior disse ao calendário: - Já estás quase a terminar a tua função.
Em breve o teu tempo ficará pretérito e repousarás no armário das recordações. Creio que estremeceu mas não estou certa.
Falemos então de futuro. Aos
romanos se devem também os nomes dos meses que atualmente se usam para nos
situarmos no tempo. Num regresso às origens, tomarei
em cada mês, a origem do seu nome como ponto de partida para tentar fazer o
calendário de 2014. Assim, também irei ter uma recordação da
viagem a Sines.
Enquanto deambulo pela questão do
tempo e do calendário do próximo futuro, num canto da sala, uma aranha
perspicaz instalada na sua teia espera o tempo de um inseto nela ficar presa. A
teia é o engenho com que aranha doma o tempo da sua sobrevivência. A aranha não
corre contra o tempo, a aranha constrói a sua teia e, quieta, espera que o
tempo lhe traga uma presa. É o natural conflito de existir. A eterna guerra
que, mesmo no silêncio da aranha, mantem o destino contínuo em nós, desta
natureza. A miragem da paz é necessária para conseguimos viver o conflito da
existência.
Ela olha para mim com estranheza
porque não entende porque é que a questão do tempo constitui motivo para eu
gastar tempo a fazer um calendário. Confesso que não lhe sei responder e não
sei se alguém terá resposta para esta aranha.
Eu fito-a e sinto-me na obrigação
de ripostar com algum argumento. Coloque-lhe a hipótese de que o nosso
calendário poderá ser a nossa teia. Ela parece ter ficado pensativa e
adormeceu.
Abri as janelas para renovar o ar
e também para permitir que algum inseto circule e entre no templo do tempo
daquela aranha. Algum inseto vai finar naquela teia e assim deixará de me
incomodar. Crueldades gritam-me as paredes desconcertadas com o que escrevo.
Olhei-as com a doçura de que os meus olhos são capazes e sussurrei-lhes
baixinho: São apenas e só conflito de interesses, é a natureza em nós.
Por favor não estraguem as teias.
Isabel D. R. Silva