sexta-feira, 2 de agosto de 2019

A Viagem depois da viagem a São Petersburgo

Depois da viagem a São Petersburgo 

1- Infantis descobertas que regressam na idade madura

Quem dá voz à voz de um autor é a voz de cada leitor. Essa é a ressonância das palavras em transumância. Esses são os encontros que desinquietam e ampliam a possibilidade de se ser menos desumano. 
Assim, nas viagens pela leitura ou pelos sítios dos outros, quando nos dispomos a desafiar-nos, a perder-nos e a reencontrar-nos numa atmosfera desconhecida podemos questionar as certezas que pesam na bagagem. 
Onde se encontra o desconhecido se pode regressar ao sítio do espanto, ao tempo da infância ainda sem medo do medo. 

Estrangeiro em São Petersburgo, Gógol fala dela nos seus contos, condensando-a em especial, na narrativa  “Avenida Nevski”. 
Acontece que, a esse livro, eu leitora lhe dei a minha voz e, nesta ocasião, cruzando-me e percorrendo-a, durante 5 dias. 
Dupla viagem esta, estimulada mas não guiada por Gógol. 
O lastro dos 5 dias, tão pouco tempo de permanência, se prolongam na viagem depois da viagem e, essa sem tem tempo definido, incorporou-se e seguirá.

O que vive nas palavras é o que nelas cada um vê. Mesmos as mais descritivas se metamorfoseiam no contexto onde cada um as alinha e encadeia. Gógol, na página 28, fez-me estremecer quando li e reli este parágrafo. 
“Levava os lábios cerrados por todo um enxame de devaneios deliciosos. Tudo o que resta das recordações de infância, tudo o que traz sonhos e inspiração serena à luz da lamparina acesa - tudo isso parecia juntar-se, fundir-se e reflectir-se naqueles lábios harmoniosos.”

A arte e, neste caso da literatura, será aquela que consegue criar sítios de metamorfoses em que os significados e sentidos brotam instáveis e desenham caminhos de transformação.
Nas viagens pelos sítios os segredos das experiências depositam-se num algures sem coordenadas, flutuam em espera de resgate desse inacessível e aguardam que a sinapse das células aconteça.

Em São Petersburgo tantas e tão sumptuosas catedrais são de leitura obrigatória porque nelas se conservam as atmosferas dos que nelas respiraram e, no presente, ali se procura a profundidade nas diversas camadas de memória.
Em todas elas se presencia que a religiosidade não sucumbiu aos tempos em que quiseram substituir a crença no divino por outra que oferecia um paraíso não menos fantasioso. 
E haverá paraísos fora da fantasia? 
Com a incapacidade de um não crente creio que, em ambas as crenças, vive uma idêntica fé numa salvação que resgata do medo. 

E quem vive desabitado de uma crença religiosa como resgata esse medo que habita a humana condição?

Nesta interrogação sem resposta, e debaixo das abobadas douradas das catedrais, sentimentos contraditórios se abraçam num encontro apaixonado. 
Por um lado solta-se um pólen que, invadindo os crentes, os torna pesados e circunspectos e assim arrebatados se elevam em leves e invisíveis voos que aparentam submissão libertadora. Por outro lado os não crentes se enchem de uma pesada leveza interior de liberdade face àquela forma que lhes é estranha de os crentes se resgatarem do medo. 
E para os não crentes, que submissão lhes afasta o medo?

Durante a viagem por São Petersburgo esta cruzou-se com o viajar na leitura de Gogol, mas, antes desta viagem, outra as tinha imediatamente antecedido em “Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais” com Maria Filomena Molder. 

Dentro das catedrais, presenciando os ritos dos crentes, três das diversas citações selecionadas por Filomena Molder, não cessaram de pairar naqueles espaços:

“Existe entre os homens esta grande questão: o homem pode ser feliz e mortal? (in “De Civitate Dei”, S. Agostinho).

“Amar a vida mortal, isso é a felicidade. (in A Descoberta do Mundo”, Clarice Lispector).

“A condição não se cura, mas o medo da condição é curável”. (in A Descoberta do Mundo”, Clarice Lispector).

Destas três citações é mesmo curioso que o representante de uma religião seja aquele que é capaz de se/nos interrogar. Edgar Morin, no seu livro “O Homem e a Morte”, leitura já tão longínqua, ressoa agora também no horizonte destas catedrais.

Na interrogação de S. Agostinho presente-se a inevitabilidade de uma resposta onde um salvador garanta algo para depois de aqui estarmos, algo que assegura a superação da condição de termos, em vida, a presença do ser mortal. 
No jornal outra abordagem para aqui desagua, esta de T. S. Eliot (1888/1965), “A espécie humana não pode suportar muita realidade”.

Cada um olha da sua caverna e essa alegoria conforta este lugar de um não crente que, vivendo nesta incapacidade, não se apouca nem desmerece os crentes que se aconchegam nos brilhos dourados e nas imagens que cobrem as paredes e tectos das catedrais de São Petersburgo. 
Nesta incapacidade de crença penso como é grande esta criação da humana espécie. Creio mesmo, e isso já é uma crença, que a criação de Deus será a maior invenção humana que, com diversos figurinos, não o abandona. 
Engenhosa esta forma de se domesticar e de afastar o excesso de realidade.

Clarice Lispector quando afirma que “….o medo da condição é curável” dizendo que isso se faz amando a vida mortal, parece tentar responder a S. Agostinho, mas, uma interrogação se impõe, à crença de Clarice, como se sustenta esse amor pela vida mortal?

Quando se viaja pela literatura acontecem encontros que confrontam para além do reduzido mundo de cada um. Essa transumância pode retirar-nos das pequenas certezas que ofuscam a imensidão do que está no mundo dos outros. E se S. Agostinho coloca ao leitor uma questão certamente espera provocar a procura de uma resposta e se Clarice faz uma afirmação certamente desafia o leitor para procurar uma interrogação. 

Creio então que viver sem se interrogar é que não será coisa humana.
Quando isso acontece algo de desumano o atabafa. Será?
E se cada um não encontrar as suas respostas também não será coisa muito humana.

Quem se sentir muito iluminado pelas respostas que encontrar e delas fizer verdades inquestionáveis deve desconfiar de si, pois, o excesso de luz encadeia e, o seu humano ser, menos ser humano tenderá a ficar.
Donde, talvez ser mais humano é ser mais capaz de desvendar a beleza que se esconde nas diferenças. Esse talvez seja o paraíso onde belas são as diferenças que unem.


2 - O reencontro com lugares comuns ou saborear a filosofia de caserna

As grandes viagens na leitura acontecem quando os seus autores nos facultam o inesperado. E, quando esse desassossego se cruza com sítios desconhecidos, onde não sabemos situar-nos então é o acaso, esse lugar místico, onde acontecemos e de onde todos surgimos. 
Porque do desassossego dos corpos se nasce e é desse acaso que somos estes e não outros. 

As cidades também assim surgem no olhar e na pele de quem as desvenda e desse acaso são, para cada um, estas e não outras. 
Nesta São Petersburgo, aquela que, à pouco mais de 300 anos, se começou a erguer com toneladas de pesadas pedras vindas de todo o império, erguida pelo desassossego de Pedro I, para ser uma vitrine do grande império da sua Rússia e se mostrar ao Ocidente, foi o palco das extravagâncias dos Romanov, e nessa escravidão exausta se fermentou a Revolução de 1917 que a tornou Leninegrado. Essa que aguentou o cerco do absurdo ideário de Hitler na Segunda Guerra e a cegueira redentora que se lhe seguiu. Do outro lado também outras cegueiras se ergueram, até à queda de um muro que se ergueu em Berlim, devolvendo-a a ser São Petersburgo. Tantas fantasias e crenças em ambos os lados do muro se avolumaram e esvaziaram. 

Nas suas avenidas longas e largas recortadas por rios e canais se sucedem os palácios, as catedrais e os prédios robustos onde a pedra lhes suporta a solidez da sua vida tão espessa.
Esta mesma São Petersburgo, de onde se vigia o território dos perigos do Báltico, aquela que acolheu  Dostoiévski, Tolstoy, Pushkin, aquela que resistiu às invasões de Napoleão e voltou a renascer do prolongado cerco nazi, aquela que acolheu os olhos inquietos e nómadas de Gógol que, entre viagens compulsivas, foi encontrando na escrita o refúgio para o seu medo e depois na fé se aconchegou para enfrentar a prematura morte. 
Ao ler a sua nota biográfica, - “Passou grande parte da sua vida em viagens pelo estrangeiro e pela Rússia. Depois de uma lenta agonia, morreu em 1852, num estado de ascese e em grande sofrimento” - os seus encontros com a religião, “reza como um mujique”, volta a interrogação de S. Agostinho à qual parece que Gógol encontrou a resposta que ele suscitava ou talvez pressentisse a crença de Clarice, “A condição não se cura, mas o medo da condição é curável”. 

Será?…..talvez por isso viajar é preciso porque o globo é uma esFERA!

IRS


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