sexta-feira, 1 de novembro de 2013

VIAGEM 2013 Relato V


VIAGEM 2013- Relato V
Continuando por Sines

Uma fotografia de viagem pode ser o refúgio do tempo que nos foge. Dispara-se e aprisiona-se aquilo que primeiro nos atrai. Ludibriamos a falta de tempo e, parte daquele sítio já está connosco, sem suportarmos a exaustão da atenção. É tentador mas ainda nos retira mais tempo ao pouco que temos e, por isso, deixa-nos uns resíduos de vazios atafulhados de arquivos que, provavelmente, não teremos tempo de rever.
Isto porque fotografar exigiria ainda mais tempo a acrescentar ao da viagem.
Escrever sobre as experiências de viajar obriga-nos a pensar sobre ela e assim, nesse tempo de procurar as palavras, dissolvemos a superfície da descrição e ganhamos mais ser. As coisas entram e revolvem-se com o que já cá tínhamos e emergem outras mais que, até a nós, nos surpreendem. As palavras ajudam-nos nessa revelação.
Difíceis de encontrar, domar e encadear impulsionam-nos nessa ingreme escalada e, nesse processo, ficamos aprisionados pela liberdade.
Sem a precisão fotográfica, como se de um desenho se tratasse, tudo fica à mercê da imperfeição da nossa síntese, tudo depende do que arbitrariamente se decide como traços essenciais. Tudo o que não interessa à nossa atenção não entra e pronto porque vemos só aquilo que queremos. Vivemo-nos através das palavras e assim podemos continuar a viajar sem sair daqui.
Sines é rasgada por corredores largos cheios de paralelas veias metálicas. Por elas circulam líquidos viscosos e inflamáveis que ligam o cabo de Sines às fábricas onde serão transformados. Veem dos navios num estado de lastro denso de breu. As moléculas cumprem um circuito de alquimias e, assim separadas, vão entrar em cadeias de transfiguração. Entre as dunas da costa do norte e as falésias do sul atravessam o cabo e em silêncio circulam.
As veias metálicas sobem a encosta alinhadas como cordas de violoncelo. Seguem aconchegadas à superfície ou abrigadas em socalcos que compensam os desníveis. Nada pode ficar no seu caminho como se fossem comboios invisíveis.
A seguir à subida da encosta, no cabo de Sines, as veias metálicas servem de fronteira ao Bairro Amílcar Cabral como se a arrumação urbana tivesse um sótão da cidade onde se acondiciona o mobiliário que não condiz com a restante decoração.
Entre estas tubagens e a Estrada da Costa do Norte fica uma língua de terra, ligeiro promontório, onde o Farol, todas as noites, bombardeia e rasga a escuridão com rastos circulares que esmorecem nos céus. Nesse troço as tubagens ficam mais ou menos anónimos voltando a integrar a paisagem acessível quando se aproximam da rotunda de entrada em Sines. A Estrada da Costa do Norte faz-lhes uma travessia aérea em viaduto quase rasante e daí se pode dominar de onde veem e para onde vão. Podemos segui-los tomando a direção da Ribeira dos Moinhos e, por entre pinhais e casas dispersas, chegar ao terreiro da Ermida de S. Bartolomeu.
Esta Ermida foi construída pelos frades da Ordem de Santiago cumprindo, admite-se, ordens de Dom Pedro I (século XIV). Destino de peregrinação, com destaque para os artesãos de curtumes, uma vez que Bartolomeu é o patrono dos ofícios que lidam com objetos cortantes. Desse tipo de peregrinação são testemunho as pedras de amolar incrustadas nas paredes do edifício.

Em 1517, de visita a Sines, Dom Jorge de Lencastre, comendador da Ordem de Santiago, passa pela ermida e determina que se proceda à recuperação da cobertura. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o edifício passa para a posse de particulares e entra em ruína.

Desde os anos 70 do século XX que o corredor de tubagens lhe faz companhia. Em troca dessa invasão territorial, nos anos 80, foi novamente recuperada. Não ficaria bem à indústria da modernidade conviver com edifício sagrado em ruínas. Consciências tranquilizadas, o seu destino de desamparo, não a abandonou. Solitária, a Ermida passou a ter por companhia mais próxima as tubagens metálicas que, daquele ponto, tanto parecem cordas de guitarra como vísceras de animal gigante esventrado.

Se seguirmos, a pé, o seu percurso iremos vislumbrar de um plano rasante as duas cidadelas gigantes onde desaguam. Uma mais próxima à esquerda e a outra mais distante dali à nossa direita.

Para apreciarmos estas cidadelas devemos deixar cair a noite. Aí virão luzes, muitas luzes que darão o contorno e extensão daqueles volumes. Pelo emaranhado de tubagens e caldeiras e pelos fumos e chamas das chaminés adivinhamos a vida das moléculas extraídas do lastro negro de breu.

Alguns produtos extraídos voltarão a fazer o caminho inverso para embarcarem noutros navios. Voltarão, pela última vez a passar junto à Ermida de S. Bartolomeu. Outras seguirão o seu destino incorporando objetos de plástico, submersas em líquidos ou planando em gazes. Entrarão numa espiral volátil que as libertará na atmosfera e, talvez, também da gravidade terreste.

O lastro negro de breu que chegou a si por milhares de anos nas entranhas da terra aporta em Sines, entra nestas veias como quem entra na ante camara do extermínio.

E assim, em Sines, a Ermida cujo patrono Bartolomeu protegia os artesãos que usavam objetos cortantes também acolhe os que, de forma tão invisível, continuam os ofícios de (re) finar.

Isabel D. R. Silva

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