VIAGEM 2013- Relato V
Continuando por Sines
Uma fotografia de viagem pode ser
o refúgio do tempo que nos foge. Dispara-se e aprisiona-se aquilo que primeiro
nos atrai. Ludibriamos a falta de tempo e, parte daquele sítio já está connosco,
sem suportarmos a exaustão da atenção. É tentador mas ainda nos retira mais
tempo ao pouco que temos e, por isso, deixa-nos uns resíduos de vazios atafulhados
de arquivos que, provavelmente, não teremos tempo de rever.
Isto porque fotografar exigiria
ainda mais tempo a acrescentar ao da viagem.
Escrever sobre as experiências de
viajar obriga-nos a pensar sobre ela e assim, nesse tempo de procurar as
palavras, dissolvemos a superfície da descrição e ganhamos mais ser. As coisas
entram e revolvem-se com o que já cá tínhamos e emergem outras mais que, até a
nós, nos surpreendem. As palavras ajudam-nos nessa revelação.
Difíceis de encontrar, domar e
encadear impulsionam-nos nessa ingreme escalada e, nesse processo, ficamos aprisionados
pela liberdade.
Sem a precisão fotográfica, como
se de um desenho se tratasse, tudo fica à mercê da imperfeição da nossa
síntese, tudo depende do que arbitrariamente se decide como traços essenciais.
Tudo o que não interessa à nossa atenção não entra e pronto porque vemos só
aquilo que queremos. Vivemo-nos através das palavras e assim podemos continuar
a viajar sem sair daqui.
Sines é rasgada por corredores
largos cheios de paralelas veias metálicas. Por elas circulam líquidos viscosos
e inflamáveis que ligam o cabo de Sines às fábricas onde serão transformados. Veem
dos navios num estado de lastro denso de breu. As moléculas cumprem um circuito
de alquimias e, assim separadas, vão entrar em cadeias de transfiguração. Entre
as dunas da costa do norte e as falésias do sul atravessam o cabo e em silêncio
circulam.
As veias metálicas sobem a
encosta alinhadas como cordas de violoncelo. Seguem aconchegadas à superfície
ou abrigadas em socalcos que compensam os desníveis. Nada pode ficar no seu
caminho como se fossem comboios invisíveis.
A seguir à subida da encosta, no
cabo de Sines, as veias metálicas servem de fronteira ao Bairro Amílcar Cabral
como se a arrumação urbana tivesse um sótão da cidade onde se acondiciona o
mobiliário que não condiz com a restante decoração.
Entre estas tubagens e a Estrada
da Costa do Norte fica uma língua de terra, ligeiro promontório, onde o Farol,
todas as noites, bombardeia e rasga a escuridão com rastos circulares que
esmorecem nos céus. Nesse troço as tubagens ficam mais ou menos anónimos
voltando a integrar a paisagem acessível quando se aproximam da rotunda de
entrada em Sines. A Estrada da Costa do Norte faz-lhes uma travessia aérea em
viaduto quase rasante e daí se pode dominar de onde veem e para onde vão.
Podemos segui-los tomando a direção da Ribeira dos Moinhos e, por entre pinhais
e casas dispersas, chegar ao terreiro da Ermida de S. Bartolomeu.
Esta
Ermida foi construída pelos frades da Ordem de Santiago cumprindo, admite-se,
ordens de Dom Pedro I (século XIV). Destino de peregrinação, com destaque para
os artesãos de curtumes, uma vez que Bartolomeu é o patrono dos ofícios que
lidam com objetos cortantes. Desse tipo de peregrinação são testemunho as
pedras de amolar incrustadas nas paredes do edifício.
Em
1517, de visita a Sines, Dom Jorge de Lencastre, comendador da Ordem de
Santiago, passa pela ermida e determina que se proceda à recuperação da
cobertura. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o edifício passa para
a posse de particulares e entra em ruína.
Desde
os anos 70 do século XX que o corredor de tubagens lhe faz companhia. Em troca
dessa invasão territorial, nos anos 80, foi novamente recuperada. Não ficaria
bem à indústria da modernidade conviver com edifício sagrado em ruínas. Consciências
tranquilizadas, o seu destino de desamparo, não a abandonou. Solitária, a
Ermida passou a ter por companhia mais próxima as tubagens metálicas que,
daquele ponto, tanto parecem cordas de guitarra como vísceras de animal gigante
esventrado.
Se
seguirmos, a pé, o seu percurso iremos vislumbrar de um plano rasante as duas cidadelas
gigantes onde desaguam. Uma mais próxima à esquerda e a outra mais distante
dali à nossa direita.
Para
apreciarmos estas cidadelas devemos deixar cair a noite. Aí virão luzes, muitas
luzes que darão o contorno e extensão daqueles volumes. Pelo emaranhado de
tubagens e caldeiras e pelos fumos e chamas das chaminés adivinhamos a vida das
moléculas extraídas do lastro negro de breu.
Alguns
produtos extraídos voltarão a fazer o caminho inverso para embarcarem noutros
navios. Voltarão, pela última vez a passar junto à Ermida de S. Bartolomeu.
Outras seguirão o seu destino incorporando objetos de plástico, submersas em
líquidos ou planando em gazes. Entrarão numa espiral volátil que as libertará
na atmosfera e, talvez, também da gravidade terreste.
O
lastro negro de breu que chegou a si por milhares de anos nas entranhas da
terra aporta em Sines, entra nestas veias como quem entra na ante camara do
extermínio.
E
assim, em Sines, a Ermida cujo patrono Bartolomeu protegia os artesãos que usavam
objetos cortantes também acolhe os que, de forma tão invisível, continuam os
ofícios de (re) finar.
Isabel D. R. Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário