domingo, 10 de novembro de 2013

RELATO VII Recordação da viagem a Sines


RELATO VII
Recordação da viagem a Sines
Costumo trazer das viagens mais longínquas o calendário de parede que me ajudará a situar no tempo, a medir a sua espessura e o seu consumo ao longo do ano seguinte. Como em 2013 não houve, nem vai haver, viagem para fora deste minúsculo retângulo, muro do oceano e das terras de Espanha terei eu, para 2014, de o fazer.

Calendae era o nome dado pelos romanos ao primeiro dia de cada mês e significa “dia de pagar as contas” – daí a origem da palavra calendário, “livro de contas”.
Um calendário é uma espécie de mapa que condensa a respiração dos seres, sincronizada com os duplos movimentos da terra, dança sedutora que acolhe os sémenes solares de luz e calor gerando assim, nos seus territórios, os dias e as noites e as estações desse acasalamento de ciclo anual. Nessa dança, a gravidade da terra arrasta com ela a lua que povoa as noites de mistério.

O calendário também poderá ser um fosco espelho do tempo e a arte é a maneira de o tentarmos desembaciar para que, cada um desvende o “sentimento de si”.
As artes serão manufaturas de eus, tradutoras individuais de plurais perplexidades datadas pelo tingimento dos tempos. Ou serão espelho retrovisor de dupla face que nos oferece a contagem crescente e decrescente do tempo?

Olho para o Taj Mahal do calendário de 2013 que trouxe da Índia. Está à minha frente enquanto deambulo entre o tempo e arte. Cada página tem dois meses e a imagem é sempre a do Taj Mahal, mas algo diferente. São imagens que capturam o tempo a passar por ele nas diversas estações do ano. Em todas as fotografias ele corporiza na sua alva cor as “vozes do silêncio” que nos interrogam brutalmente sobre tudo. Desvio dele o olhar que refugio no teclado para aguentar a aflição e o peso das interrogações com que me confronta.
Desconcentrada e cansada tentei afastar tamanha intromissão. Em voz interior disse ao calendário: - Já estás quase a terminar a tua função. Em breve o teu tempo ficará pretérito e repousarás no armário das recordações.
Creio que estremeceu mas não estou certa.   

Falemos então de futuro. Aos romanos se devem também os nomes dos meses que atualmente se usam para nos situarmos no tempo. Num regresso às origens, tomarei em cada mês, a origem do seu nome como ponto de partida para tentar fazer o calendário de 2014. Assim, também irei ter uma recordação da viagem a Sines.
Enquanto deambulo pela questão do tempo e do calendário do próximo futuro, num canto da sala, uma aranha perspicaz instalada na sua teia espera o tempo de um inseto nela ficar presa. A teia é o engenho com que aranha doma o tempo da sua sobrevivência. A aranha não corre contra o tempo, a aranha constrói a sua teia e, quieta, espera que o tempo lhe traga uma presa. É o natural conflito de existir. A eterna guerra que, mesmo no silêncio da aranha, mantem o destino contínuo em nós, desta natureza. A miragem da paz é necessária para conseguimos viver o conflito da existência.

Ela olha para mim com estranheza porque não entende porque é que a questão do tempo constitui motivo para eu gastar tempo a fazer um calendário. Confesso que não lhe sei responder e não sei se alguém terá resposta para esta aranha.
Eu fito-a e sinto-me na obrigação de ripostar com algum argumento. Coloque-lhe a hipótese de que o nosso calendário poderá ser a nossa teia. Ela parece ter ficado pensativa e adormeceu.

Abri as janelas para renovar o ar e também para permitir que algum inseto circule e entre no templo do tempo daquela aranha. Algum inseto vai finar naquela teia e assim deixará de me incomodar. Crueldades gritam-me as paredes desconcertadas com o que escrevo. Olhei-as com a doçura de que os meus olhos são capazes e sussurrei-lhes baixinho: São apenas e só conflito de interesses, é a natureza em nós.
Por favor não estraguem as teias.

Isabel D. R. Silva

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