domingo, 5 de novembro de 2017

Tóquio


Voltar a Tóquio para regressar a Portugal

Vê-se diferente quando se retorna porque, essa segunda vez, nos abre a janela do reconhecimento. Esfuma-se o filtro das expectativas no confronto destas com as sensações do primeiro contacto e aí começa a formar-se o nosso ponto de vista na relação directa com o objecto.

Por isso, viajar talvez seja a possibilidade de viver o encanto desse trabalho.

O reencontro com os corvos (Ssp. japonensis) que, desde a surpresa inicial, aquando da primeira chegada a Tóquio, nos acompanhou por todas as cidades e lugares por onde andámos ficou-nos como o som que está dentro do silêncio do Japão.


Na mudez daquela ruela do hotel, eles crocitam negros e brilhantes, poisam nos fios que se interpõem entre a terra e o céu e, ocultam-se nas ramagens dos jardins e florestas por onde vagueamos. Adaptaram-se aos aglomerados urbanos e respigam, com a sua enorme perspicácia, os escassos despojos que os japoneses colocam nas ruas.

Contrariamente à simbologia greco-latina e cristã, para os japoneses os corvos representam o mensageiro divino e dos bons presságios.

Esta cidade já atingiu uma escala difícil para quem habita nos ibéricos tamanhos. Mas, na sua imensidão é capaz de gerir uma articulação na descomunal rede de transportes onde, sem falhas, circulam multidões silenciosas e solitárias. A sua velocidade e pontualidade deslumbram-nos.

As estações dos comboios e metropolitano são mundos subterrâneos onde há sempre multidões a circular. Aparentam saber o caminho naqueles labirintos, não hesitam, não olham e seguem sem correr. Respeitam filas mas não hesitam em capturar um lugar sentado e, de olhos fixos no telemóvel ou dormindo, ignoram alguém mais velho a quem deveriam ceder o lugar. Talvez o cansaço os force a ser assim tão alheios, mestres em passarem despercebidos como crianças envergonhadas receando que, nos seus olhos, os possamos desvendar. Como esta indiferença não é sensação agradável alimento algum consolo com a suspeita de que nos observam pelo canto do olho.

Haverá talvez um ancestral sentido de respeito pelo outro que os iniba de olhar um desconhecido nos olhos porque isso corresponderá a uma proximidade invasora?

Noutros países por onde já viajámos ou sente-se o desconforto de alguma reverência ou alguma indiferença e menosprezo. Isto, conforme nos encaram como mais desenvolvidos e poderosos ou em vias de desenvolvimento e pouco cosmopolitas.

Mas, aqui no Japão, não se sente nem uma coisa nem outra.

Assim, recordando e misturando todas as experiências de viajante, cresce a sensação de que, quem viaja, mesmo não querendo, invade uma privacidade. Afinal, coisa boa quando se se dispõe também a ser invadido.

Viajar pode tornar visível o invisível lastro cultural que corre nas veias de cada um. Isto se disponível se estiver para o perscrutarmos e desvendarmos.  

Por isso, para nós, todo este rigor, espanta. O seu silêncio é-nos estranho. E, as suas vénias sugerem-nos autómatos.

Conhecemos muito do clima vivenciado nos transportes pois, muitas horas neles passámos. Percepciona-se a solidão pela rara interacção que, entre eles, ocorre durante os percursos nos transportes. Captar um olhar é raro. Mas, quando solicitados para uma ajuda são de uma amabilidade e préstimo do tamanho da sua metrópole.

Por entre a densidade e imponência dos edifícios modernos, nos redutos de Tóquio antigo, há espaços minúsculos e ruas estreitíssimas e neles observa-se, entre comensais, que a inibição percepcionada em público soçobrou. Nalguns desses sítios não aceitam turistas. Citando Junichiro Tanizaki que, em 1933 escrevia; O mesmo acontece no domínio da alimentação: encontrar numa grande cidade iguarias que convenham ao paladar de um velho é um empreendimento esgotante. (Elogio da Sombra, pág.75, Relógio D`Água, 2008). Partilhamos esta decepção com a alimentação. Certamente a falta de tempo não nos permitiu descobertas gratificantes como as que o mesmo autor relata na página 41: A cozinha japonesa, houve quem o dissesse, não é coisa para se comer, mas para se olhar; num caso como este, estaria tentado a dizer: para se olhar e, melhor ainda, para se meditar! Tal é, de facto, o resultado da silenciosa harmonia entre a luminosidade das velas tremeluzindo na sombra e o reflexo dos lacados.

Não conseguimos imaginar como um japonês nos observa mas supomos que estranhe que o lixo que produzimos seja constantemente descartado em todo o lado pois eles têm de acautelar que na rua ou nos espaços comerciais não existem caixotes e têm de o levar para casa. Que estranhem que falemos ao telemóvel nos transportes públicos e que as conversas sejam em voz alta. Talvez estranhem que vistamos cores diversas e que os nossos sapatos não sejam um número acima do tamanho do nosso pé pois não temos o hábito de nos descalçarmos antes de entrar em casa. Talvez estranhem que, em cada entrada no nosso metro, surja o aviso para se estar atento aos carteiristas. Talvez também estranhem os actos de violação dos “grafites” que estilhaçam os corpos da paisagem e a tranquilidade da atmosfera visual.

Talvez para eles faça ainda sentido sermos os nambam que, para eles, significa bárbaros do sul.

Nalgumas coisas ficamos com inveja da sua conduta, noutras aumenta a apreço por assim sermos.

A penumbra e a sombra, que tanto cultivam, talvez ainda os protejam. Mas é difícil essa penumbra e sombra sobreviverem na exaustão visual dos ecrãs gigantes que cobrem as fachadas dos prédios espelhados das grandes avenidas.

Na reflexão de um escritor contemporâneo citado por Camilo Martins de Oliveira no seu livro Fomos em Busca do Japão, pág 160) encontramos o registo dessa mágoa “…a civilização ocidental, pelos nossos contactos e fricções com ela, foi-nos pródiga em benfeitorias e, simultaneamente, fez-nos sofrer. Mais precisamente, os sofrimentos do Japão – ou talvez mesmo da Ásia – começaram quando os ocidentais se tornaram, aos nossos olhos, mais belos do que os asiáticos. E essa mágoa ou, melhor, esse mal-estar, permanece em mim, que aqui vivo sem conseguir liquidá-la.

Assim, reencontrámos Tóquio, entre a tradição da contenção e recolhimento e a exuberância da tecnologia.

 




Nesta encruzilhada, em que todos estamos, nos despedimos do Japão e nele deixámos, outro regresso, o de Wenceslau de Moraes. Na última viagem de metro para apanharmos o mono-carril até ao aeroporto, esta sensação de alheamento dos japoneses teve uma inesperada excepção. Um senhor perguntou de onde éramos e isso bastou para que a conversa só terminasse quando a estação onde tínhamos de sair se aproximava. Sabia que os portugueses tinham levado as armas de fogo para o Japão e quis saber o nome do rei de Portugal de realizou os descobrimentos. Perguntou se gostávamos de fado. Deu-nos o seu cartão e nós oferecemos-lhe o livro do Wenceslau de Moraes “Paisagens da China e do Japão”, que tínhamos levado para ir lendo. O seu cartão, com um airoso gafanhoto no canto inferior esquerdo, indica em inglês, que é guia intérprete no Air Folk House Museum.

No avião, a levantar voo, uma agradável surpresa. No horizonte, a sair das nuvens, o perfil negro como os corvos, do Monte Fuji.

A forma, o som e a cor do Japão que trouxemos connosco.



Na longa viagem de avião o Antártico

 





 Isabel e Luís

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