Voltar a Tóquio para regressar a Portugal
Vê-se diferente quando se retorna porque, essa segunda vez,
nos abre a janela do reconhecimento. Esfuma-se o filtro das expectativas no
confronto destas com as sensações do primeiro contacto e aí começa a formar-se
o nosso ponto de vista na relação directa com o objecto.
Por isso, viajar talvez seja a possibilidade de viver o
encanto desse trabalho.
O reencontro com os corvos (Ssp. japonensis) que, desde a
surpresa inicial, aquando da primeira chegada a Tóquio, nos acompanhou por
todas as cidades e lugares por onde andámos ficou-nos como o som que está
dentro do silêncio do Japão.
Na mudez daquela ruela do hotel, eles crocitam negros e
brilhantes, poisam nos fios que se interpõem entre a terra e o céu e,
ocultam-se nas ramagens dos jardins e florestas por onde vagueamos.
Adaptaram-se aos aglomerados urbanos e respigam, com a sua enorme perspicácia, os escassos despojos que os japoneses
colocam nas ruas.
Contrariamente à simbologia greco-latina e cristã, para os
japoneses os corvos representam o mensageiro divino e dos bons presságios.
Esta cidade já atingiu uma escala difícil para quem habita
nos ibéricos tamanhos. Mas, na sua imensidão é capaz de gerir uma articulação
na descomunal rede de transportes onde, sem falhas, circulam multidões
silenciosas e solitárias. A sua velocidade e pontualidade deslumbram-nos.
As estações dos comboios e metropolitano são mundos
subterrâneos onde há sempre multidões a circular. Aparentam saber o caminho naqueles
labirintos, não hesitam, não olham e seguem sem correr. Respeitam filas mas não
hesitam em capturar um lugar sentado e, de olhos fixos no telemóvel ou
dormindo, ignoram alguém mais velho a quem deveriam ceder o lugar. Talvez o
cansaço os force a ser assim tão alheios, mestres em passarem despercebidos
como crianças envergonhadas receando que, nos seus olhos, os possamos
desvendar. Como esta indiferença não é sensação agradável alimento algum
consolo com a suspeita de que nos observam pelo canto do olho.
Haverá talvez um ancestral sentido de respeito pelo outro que
os iniba de olhar um desconhecido nos olhos porque isso corresponderá a uma
proximidade invasora?
Noutros países por onde já viajámos ou sente-se o desconforto
de alguma reverência ou alguma indiferença e menosprezo. Isto, conforme nos
encaram como mais desenvolvidos e poderosos ou em vias de desenvolvimento e
pouco cosmopolitas.
Mas, aqui no Japão, não se sente nem uma coisa nem outra.
Assim, recordando e misturando todas as experiências de
viajante, cresce a sensação de que, quem viaja, mesmo não querendo, invade uma
privacidade. Afinal, coisa boa quando se se dispõe também a ser invadido.
Viajar pode tornar visível o invisível lastro cultural que
corre nas veias de cada um. Isto se disponível se estiver para o perscrutarmos
e desvendarmos.
Por isso, para nós, todo este rigor, espanta. O seu silêncio
é-nos estranho. E, as suas vénias sugerem-nos autómatos.
Conhecemos muito do clima vivenciado nos transportes pois,
muitas horas neles passámos. Percepciona-se a solidão pela rara interacção que,
entre eles, ocorre durante os percursos nos transportes. Captar um olhar é
raro. Mas, quando solicitados para uma ajuda são de uma amabilidade e préstimo
do tamanho da sua metrópole.
Por entre
a densidade e imponência dos edifícios modernos, nos redutos de Tóquio antigo,
há espaços minúsculos e ruas estreitíssimas e neles observa-se, entre
comensais, que a inibição percepcionada em público soçobrou. Nalguns desses
sítios não aceitam turistas. Citando Junichiro Tanizaki que, em 1933 escrevia; “O mesmo acontece no domínio da alimentação: encontrar numa grande
cidade iguarias que convenham ao paladar de um velho é um empreendimento
esgotante.”
(Elogio da Sombra, pág.75, Relógio D`Água, 2008). Partilhamos esta decepção com
a alimentação. Certamente a falta de tempo não nos permitiu descobertas
gratificantes como as que o mesmo autor relata na página 41: “A cozinha japonesa, houve quem o dissesse, não é coisa para se comer,
mas para se olhar; num caso como este, estaria tentado a dizer: para se olhar
e, melhor ainda, para se meditar! Tal é, de facto, o resultado da silenciosa
harmonia entre a luminosidade das velas tremeluzindo na sombra e o reflexo dos
lacados”.
Não conseguimos imaginar como um japonês nos observa mas
supomos que estranhe que o lixo que produzimos seja constantemente descartado
em todo o lado pois eles têm de acautelar que na rua ou nos espaços comerciais
não existem caixotes e têm de o levar para casa. Que estranhem que falemos ao telemóvel
nos transportes públicos e que as conversas sejam em voz alta. Talvez estranhem
que vistamos cores diversas e que os nossos sapatos não sejam um número acima
do tamanho do nosso pé pois não temos o hábito de nos descalçarmos antes de
entrar em casa. Talvez estranhem que, em cada entrada no nosso metro, surja o
aviso para se estar atento aos carteiristas. Talvez também estranhem os actos
de violação dos “grafites” que estilhaçam os corpos da paisagem e a
tranquilidade da atmosfera visual.
Talvez para eles faça ainda sentido sermos os nambam que, para
eles, significa bárbaros do sul.
Nalgumas coisas ficamos com inveja da sua conduta, noutras
aumenta a apreço por assim sermos.
A penumbra e a sombra, que tanto cultivam, talvez ainda os
protejam. Mas é difícil essa penumbra e sombra sobreviverem na exaustão visual dos
ecrãs gigantes que cobrem as fachadas dos prédios espelhados das grandes
avenidas.
Na reflexão de um escritor contemporâneo citado por Camilo
Martins de Oliveira no seu livro “Fomos
em Busca do Japão”,
pág 160) encontramos o registo dessa mágoa “…a civilização ocidental, pelos
nossos contactos e fricções com ela, foi-nos pródiga em benfeitorias e, simultaneamente,
fez-nos sofrer. Mais precisamente, os sofrimentos do Japão – ou talvez mesmo da
Ásia – começaram quando os ocidentais se tornaram, aos nossos olhos, mais belos
do que os asiáticos. E essa mágoa ou, melhor, esse mal-estar, permanece em mim,
que aqui vivo sem conseguir liquidá-la…”.
Assim, reencontrámos Tóquio, entre a tradição da contenção e
recolhimento e a exuberância da tecnologia.
Nesta encruzilhada, em que todos estamos, nos despedimos do
Japão e nele deixámos, outro regresso, o de Wenceslau de Moraes. Na última
viagem de metro para apanharmos o mono-carril até ao aeroporto, esta sensação
de alheamento dos japoneses teve uma inesperada excepção. Um senhor perguntou
de onde éramos e isso bastou para que a conversa só terminasse quando a estação
onde tínhamos de sair se aproximava. Sabia que os portugueses tinham levado as
armas de fogo para o Japão e quis saber o nome do rei de Portugal de realizou
os descobrimentos. Perguntou se gostávamos de fado. Deu-nos o seu cartão e nós
oferecemos-lhe o livro do Wenceslau de Moraes “Paisagens da China e do Japão”,
que tínhamos levado para ir lendo. O seu cartão, com um airoso gafanhoto no
canto inferior esquerdo, indica em inglês, que é guia intérprete no Air Folk
House Museum.
No avião, a levantar voo, uma agradável surpresa. No
horizonte, a sair das nuvens, o perfil negro como os corvos, do Monte Fuji.
A forma, o som e a cor do Japão que trouxemos connosco.
Na longa viagem de avião o Antártico
Isabel e Luís
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