terça-feira, 22 de outubro de 2013

Viagem em 2013-Relato III

Ainda em Sines

Encontrei no facebook (porto de abrigo para quando fugimos do mundo e em simultâneo desejamos que essa fuga seja narrada e vista pelo universo inteiro) uma foto do navio Infante Dom Henrique, em Sines. Nem de propósito este estar a ser o sítio da minha viagem deste ano.

Este navio foi aqui aprisionado num lago e condenado a servir de unidade hoteleira para o grande polo industrial espectado para Sines nos anos 70. Nestas crónicas o recurso à fotografia estava posto de parte para não prejudicar o estado de atenção. Mas, neste caso, como não fui eu que a fiz vou usá-la como uma espécie de espólio (recuerdo) desta viagem.


Não resisti e fui procurar a história deste palacete metálico flutuante com o qual me cruzei em 1980. Sabia do seu trabalho de carregar “carne (jovem) para canhão” na guerra colonial, conheci-o como respeitável mas decadente, Navio-Hotel e, de vez em quando, ao passar pelo lado sul do cabo de Sines sempre tateio o local que ocupou.

Nasceu como Infante Dom Henrique nos estaleiros da Société Anonyme John Cockerill, na Bélgica, em 1961 tendo como primeiro destino fazer a ligação entre o continente e as colónias de África de uma classe média reduzida mas em ascensão. Sonho inicial destruído pela guerra colonial, pelo que, um segundo destino o incorporou na frota sinistra que ligou tantos e inúteis sofrimentos e também algumas desvairadas ânsias de glória, porque as há sempre.
Terminada essa tormenta, maior do que a dos piores mares, depois do 25 de Abril veio o exílio em Sines à espera de outros guerreiros agora por causa do ouro negro. Outro sonho adiado.
Recordo, desse exílio (1977 a 1986), o espanto que as suas instalações provocavam. Não havia em Sines nenhum local com o seu requinte, sobretudo imaginando como seriam quando novo. Parecia um palacete flutuante. Lembro-me de deambular pelos salões, capela, casa mortuária, piscinas, camarotes, sala de comando e de descer até à casa das máquinas. Algumas vezes fui ao bar, apenas tomar café ou tentar preparar aulas, mas a primeira vez que lá fui e que o visitei foi com uma turma do 6º ano no ano lectivo 1980/81.
Penso que a propósito da questão “ver não é só olhar”, quando pedi aos alunos sugestões para aulas no exterior alguém sugeriu o Infante Dom Henrique. Desconhecendo tudo daquela terra fiquei com muitas dúvidas e, por isso, sugeri que se quisessem tratassem de fazer o contato e de organizar a uma visita, convencida de que nada iria acontecer e os alunos acabariam por ir para onde eu os tencionava levar. Convinha-me um local perto da escola para olharem com olhos de ver (observar/analisar e fazer registos) de algumas coisas em que talvez nunca tivessem reparado.
Agora percebo que foi a sua curiosidade que lhes deu a iniciativa de que eu não estava à espera. Na aula seguinte tudo combinado, dia e hora. Fui completamente guiada por eles. Atravessámos a então vila e, rapidamente chegámos à zona de povoamento disperso onde pequenas hortas conviviam com precárias oficinas e alojamentos em rulotes recentemente instalados por pessoas vindas das agora ex-colónias. Passámos pela serração do Sr Farto e junto à mesma um estaleiro exibia o esqueleto de um barco em construção. Arcos com ondulação suave geometricamente simétricos na dureza da madeira. Macios, fortes e carregados de uma delicadeza quase impossível. Os moldes com as tabelas necessárias aos cortes das peças que encaixam e fazem o barco. As fórmulas estavam ocultas e tudo parecia magia. Aprendi assim com os mestres e esses mestres também tinham aprendido com outros, explicava o carpinteiro naval. Sabedoria do tempo em que a escola era nas oficinas, talvez tenha eu pensado.
Os alunos mostravam-me a sua terra. Perguntei se ainda faltava muito e eles sempre respondiam que era já ali. Entrámos num planalto descampado que contornava uma imensa cratera que só terminava no mar.
Isto dantes a terra ia até quase à beira do mar mas agora tiram daqui a pedra para a construção dos portos, esclareciam-me eles apontando para os molhes que avançavam mar a dentro e para os camiões gigantes que num rugido estranho as transportavam dia e noite.
Seguíamos por trilhos e de Infante Dom Henrique não havia vista que alcançasse. Ouviu-se uma sirene. Perguntei o que era aquilo. É para avisar que vão fazer um rebentamento na pedreira, disseram eles com ar impávido. Tentei controlar a minha aflição e questionar como era para perceber se estaríamos em segurança. Resolvi impor um ritmo mais rápido para sair dali argumentando que estávamos a esgotar o tempo da visita no caminho.
Cheguei ao Infante com os estrondos e ecos dos rebentamentos da exploração da pedreira. Ao descer a rampa de terra vermelha o volume do personagem metálico ocupava cada vez mais toda a linha do horizonte. Os alunos (na sua grande maioria) e eu estávamos pela primeira vez a entrar num navio.
Convido os mais curiosos a verem imagens em: http://www.youtube.com/watch?v=I7Xkn302KTg
Este personagem metálico abandonou Sines e o seu patrono, Infante Dom Henrique, fundador dos descobrimentos para incorporar a designação de Vasco da Gama que, por coincidência parece que nasceu nesta vila. Com grandes obras de restauro e inovação, passou a exibir o nome do navegador que conseguiu chegar às Índias e baralhar o negócio dos mercadores terrestres.
Enfim a glória! Mas estas glórias, do navio e a dos mercados perturbados, também se revelaram efémeras e vãs.
E, para terminar a cronologia deste navio, registe-se que como ante câmara do seu fim foi rebatizado de Seawind Crown. Remetendo-nos para a simbiose de mar, onda, vaga, vento e coroa e com essa designação, em 2004, este palacete metálico foi desmantelado.

Este ano ao encontrar, em Sines e no facebook, a imagem do navio Infante Dom Henrique/Vasco da Gama/Seawind Crown permitiu-me, com os cacos da memória, refazer a viagem com os meus alunos em 1980 e voltar hoje ao local do seu exílio.

Hoje, o lugar de exílio do Infante Dom Henrique foi engolido pelas estruturas do porto de contentores e porto graneleiro onde repousam as colinas negras formadas por minúsculos grãos vindos das entranhas da terra. Tapetes de bocas contínuas aqui os engolem e transportam, rolando até à central termoelétrica onde se transformam numa energia invisível que nos dá luz. Lá na central ardem em silêncio enquanto as crianças chapinham, correm e sentem a ilusão do domínio das águas de S. Torpes. Até chegar aqui há toneladas de betão e de estruturas metálicas que conformam uma outra cidade que repousa sobre o mar.
A cratera da pedreira avançou terra a dentro deixando o mar ainda mais longe e lá muito em baixo. A paisagem que se avista desse ponto mostra como se entrelaçam a terra e o mar com brinquedos de uma escala da terra dos gigantes. Metálicas gruas esqueletos de corpos hirtas que beijam o céu, massas cilíndricas compactam o chão mas parecem emergir do centro da terra, contentores com que vão encher sótãos de recordações e vazadouros de lixo.
Tudo isto resulta num esbelto bordado com fios de mar que se entrelaçam com colinas de pedra onde se abrigam gigantes navios repletos de ouro negro, gás natural, carvão e contentores.
Em Sines, quando o sol se põe, a costa do norte aprisiona os últimos raios num adormecer avermelhado, o sul fica cercado pelas luzes frias das cidades metálicas e de betão.
Sines parece uma ilha fortificada.
A norte a escuridão encobre o areal despido e ficam os ecos dos rugidos do mar, felino animal indomável num cio perpétuo.
Na sequência das noites, quando o sol inunda de luz, todas as estruturas metálicas do sul, no seu brilho, ouve-se um futuro de ferrugem.     

Por agora, estejamos atentos para podermos ser.

 

 

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