domingo, 27 de outubro de 2013

Sines - Viagem em 2013 Relato IV


Viagem em 2013-Relato IV

Ainda em Sines

No Largo do Muro da Praia tudo está leve, maduro e espesso, em lugares assim os nossos sentidos correm o risco de ficar arrasados.

A ele se pode chegar de várias maneiras, mas aquela que mais me explode nos olhos é a que desce do mercado e desemboca nesse largo. Essa descida ligeiramente ondulada e estreita, definida pelo alinhamento dos edifícios, guarda lá ao fundo uma janela esguia que nos vai pulverizando de espaço. À medida que vamos descendo a janela vai-se alargando e abrindo e dá-nos o mar.

Aí o mar fica enquadrado numa moldura que tem do lado esquerdo as muralhas do castelo, num plano ligeiramente mais afastado, ao qual se sobrepõe o volume branco da igreja matriz. Esse ângulo é fechado pela calçada do largo do castelo, Largo do poeta Bocage, que desagua rente à entrada lateral da Capela da Misericórdia. Essa moldura fica completa, do lado direito, com a fachada do edifício do antigo hospital, atual Centro Cultural Emmerico Nunes, fronteiriço à Igreja Matriz.

De dentro das muralhas do castelo, voando em bandos, ouvem-se uns guinchos negros. Avisam os distraídos que, este largo é lugar onde coabitam, frente a frente, a fé e a resistência.

Neste Largo, entre nós e o mar apenas um muro rasteiro sem arestas de tonalidade amarela amena se interpõe. É a esse muro que, provavelmente se deve o nome de “Muro da Praia”. Essa linha horizontal, ligeiramente quente, ajuda a realçar o aveludado frio que do mar se inala. Pela manhã daí chegam os odores eróticos das descargas do peixe, intensos paladares íntimos que recordam sons de entranhas húmidas.

Do Largo até à praia há uma sinuosa e ondulante descida que nos vai dando a saborear, alternadamente, o oeste vivo e irrequieto e o nascente que guarda os silêncios, ambos encostados à baia formada pelo cabo. Por instantes, na zona de transição entre as duas direções fica, mais ou menos, um sul que é de esperança porque avança mar a dentro, a perder de vista, e solto da costa.

Na maior parte dos dias, lá ao longe, rematam o horizonte, uns vultos longitudinais que entram pelo mar e flutuam no céu, corpos inanimados da Serra do Cercal e do Cabo Sardão que, em planos diferentes se conjugam num contínuo, prolongando a grande baía que nasce neste Largo do Muro da Praia.

As muralhas do castelo coroam este pequeno planalto fronteiriço ao mar e, sempre que as aprisiono na minha atenção, parece que as suas pedras respiram em mim tudo o que já presenciaram. Guardam a cor da terra na sua alma e, extremamente serenas recebem a erosão dos tempos. Estas são muralhas que guardam o passado e, de certa forma, nos aconchegam e protegem da aflição do futuro.

Na falésia que sustenta as muralhas, quando o vento sul anuncia chuva, ondulam os canaviais em rituais fúnebres, salvíficos e redentores, que no negrume da tempestade anseiam sempre pelo regresso do sol. Por entre elas esgueiram-se os rochedos negros vulcânicos do morro e nalgumas das suas brechas vivem quase suspensos agaves e aloés.

No sopé do morro do Largo do Muro da Praia unem-se os princípios e os fins das terras e das águas numa aliança de materiais e temperaturas que acarinham e acolhem o olhar de todos os que aqui buscam estar atentos. São cada vez menos. Desde que estas pedras, que se conjugam em calçadas, conhecem os meus passos e suportam o meu peso muita gente se foi embora e por aqui deixou de passar. Estão leves e vazias, as novas pedras, porque levantaram e levaram as polidas pelas memórias.

- Será que as miragens de desenvolvimento e do progresso que têm explodido em fogo-de-artifício inundaram e afogaram de ilusões as pessoas? Interrogam-se as gaivotas no areal da praia.

- Cuidar de edificações, esquecendo as pessoas, sempre foi o prenúncio do princípio do fim de sonhos imperiais. Gritam outras gaivotas poisadas no torreão do castelo.

As fachadas dos monumentos do regime que circundam o local cheiram a miragens de imortalidade e vomitam falsas ousadias de futuro. Elas também recebem, no silêncio cortante, os restos dos sons metálicos dos sinos da Igreja Matriz que marcam as horas desabitadas. Não há burburinho humano que os abafe. Apenas um gemido trémulo e amedrontado das águas órfãs, lá em baixo, a tentarem refugiar-se no areal da praia.

Olho em redor, o Outono aproxima-se.

Esvoaça um abandono que morde e inunda tudo.

Um sítio assim merece que as pessoas não o abandonem.    

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