domingo, 18 de novembro de 2018

Descobrir os descobrimentos III - Memória e imaginação

Descobrir os descobrimentos - III

Ou a tentativa de dar visibilidade ao que de invisível ocorreu nesta viagem.


1 - Olhar para nós 

Sentados nas escadarias da igreja Matriz de Pangim (igreja da Nossa Senhora da Conceição) relemos o texto de Paulo Varela Gomes e de Alice Santiago Faria que nos ajudou a reconstituir uma face do cenário histórico que ela encerra. 
Subimos as escadarias olhando o jardim fronteiriço e apreciando as vistas que a altura vai permitindo. 
A visita ao espaço interior, foi facilitada pelo vigilante que, a pedido do senhor solicitador, lhe recomendou tratamento especial por sermos portugueses. Sentimos que ali éramos uma presença especial o que me causou um misto de desconforto pelo privilégio e de cordialidade impulsionada pela deferência afetuosa com antepassados de comum nacionalidade. 
Entre o apreço pela ousadia dos navegantes quinhentistas e os construtores que a edificaram, e a perplexidade pela ambição de supremacia legitimada pela suposta moral da verdadeira fé, aquela que lhes conferia o desígnio da evangelização, assim respirei e contemplei o interior daquela Igreja Matriz de Pangim. 
Uma aragem húmida e quente que entrava pelas portas e se cruzava com uma frescura vinda do chão possuía um inebriante perfume de grande poder interrogativo. Duas essências compunham afinal aquela misteriosa fragrância. Na mistura gerada flutuavam a essência do apresso (grande dificuldade/opressão) e a do apreço (estima/consideração/admiração). Nelas não há diferença fonética mas apenas as distingue a grafia. 

Nos instantes do reencontro no adro, o som da língua, essa pátria sonora, fez aproximar vozes até então desconhecidos.
Ouvir memórias de quem aqui nasceu e viveu e agora de visita também aqui está.
A magia do encontro do vivido e que sentiu os tempos com o sabor da ocupação e de quem dela ficou com o aroma da independência. 
A realidade, a face visível das coisas, constrói-se na cabeça de cada um, como faces em suspensão de um cubo que aguarda que o tempo lhe dê espaço suficiente para se refazer encontrando as outras e assim dar existência às arestas e com elas ser profundidade.
Hoje esse cubo em construção ganhou alguma espessura pelo encontro de pedaços de faces, superfícies construtoras de sólidos geométricos. 
Como pode ser gratificante o encontro de faces opostas porque, afinal, do mesmo cubo são.

À noite vagueando pelos canais de televisão um programa sobre o património deixado pelos portugueses em Goa. Algumas das fortalezas e igrejas que iríamos visitar nos dias seguintes. Património que, para nós, condensa a presença dos portuguesa por estas terras durante cinco séculos. O olhar do outro pelos que contam a sua história, uma das faces indispensáveis para gerar um cubo.
São pedras silenciosas que, pela sua forma e localização, falam de confrontos de crenças, lutas por territórios e riquezas.

No forte dos Reis Magos, uma pequena exposição documental, devolve-nos o olhar dos ocupados. Desde a chegada de Vasco da Gama até às memórias da luta pela libertação. Naquele encontro há uma sensação de algum desconforto. Ali estava a face oposta à do nosso interlocutor à porta da igreja de Nossa Senhora da Conceição. 

Do alto das fortalezas a melodia cantada pelo Fausto “Por este rio acima” era a silenciosa banda sonora.
Mas há, num cubo, as faces que ligam as faces opostas. Essas também opostas entre si e que medeiam as outras opostas.
Nessas também estarão as vítimas da inquisição que a ocupados e ocupantes atormentou, e o “estado novo” que a ambos diminuiu.

Quão difícil é, para todos, construir o sólido geométrico daquilo que nos uniu e separou. Mas essa cubicagem será a possibilidade de se estar mais perto da verdade. 

Aqui os cães dormem seremos pelas ruas durante o dia. É o seu modo de lidar com o calor. Apenas ao anoitecer se movimentam e fazem ouvir.

Dias mais tarde, em Rajol, numa parede da igreja uma pintura com a representação da decapitação de 5 frades da Companhia de Jesus pelos pagãos em Cuncolim (Goa) em 16 de Julho de 1583.
Faces opostas ou contíguas entre o ser mártir ou invasor.

Não é fácil mas é gratificante abrigar a confluência de faces opostas e das outras que lhes são contíguas e que opostas entre sim também são. Porque só conseguem ser faces se se deixarem integrar num sólido geométrico.

Dias depois, em Rachol (Margão) a visita à casa dos Bragança. Ouvir a língua dos descobridores falada por naturais impõe-nos novamente o peso de olharmos para nós.  Testemunho de edificação civil de cinco séculos de expansão onde se respira a política de casamentos e alianças entre aristocracias/castas. 
A imponência de outrora ainda sobrevive ao desgaste do clima e das alterações das circunstâncias derivadas da independência. Milhares de recordações que ali repousam circunscritas a uma face visível em suspensão que aguarda que o tempo lhe dê espaço suficiente para se refazer encontrando outras contíguas e opostas e assim dar existência às arestas que as unam e com elas ser profundidade.

Nesta região da Índia a maior religião é a cristã, seguida pelo hinduísmo e depois pelos muçulmanos. É frequente ver ícones destas três religiões em montras, lojas e carros.
Sente-se um clima de mútuo respeito e não se vislumbra nenhuma animosidade parecendo que aceitam e pedem a proteção de todas as divindades.
Creio que poderia ser assim neste pequeno planeta mas, interesses de outra ordem encarregam-se de envenenar o espaço místico de que o ser humano parece não poder prescindir. Afinal há quinhentos anos também foi isso que aconteceu e aparenta não ter fim à vista.

Será que as religiões são abrigos para os medos e o sítio onde os pobres se resignam e os ricos se redimem?

2 - Olhar o outro

Estar perto de Coulão, em Varkala, num agora centrado num estranho desejo de respirar os rastos das lonjuras onde aportaram os portugueses à quinhentos anos. 
Tentar imaginar o que terão descoberto poderá ser o desejo de descobrir os descobrimentos. Esta espécie de obsessão de poder olhar as pedras que restam e de nelas, de certa forma, ver o tempo que de nós guardam.

Depois de termos visitado tantas igrejas e fortes os olhos estavam a transbordar de descobridores e seus despojos mas secos do outro, daquele que foi descoberto sem disso poder fazer obra nem dar testemunho. 

Num areal onde ainda subsistem barcos de pesca e jangadas, hoje iluminados pelos reflexos da luz do sol que no horizonte vermelho se esconde para o ocidente, aqueles barcos cozidos são parte da alma do outro. Cansada de tanto olhar para nós um impulso avassalador me suga toda a atenção para os seus artefactos e, em planos aproximados os perscrutei em digitais enquadramentos dispersos. 
Cada pedaço uma parcela do seu ser que arrecadei ao meu modo. 

Olhando as fotografias um apetite desmesurado me levou a reler a descrição de Marco Pólo que, no séc XIII, este pedaço deles guardou:

<176>
Do reino de Coilum
“Coilum é um grande reino situado a sudoeste quando se parte de Maabar e se caminha quinhentas milhas. Todos são idólatras e existem aí cristãos e judeus; têm a sua língua própria.
Aqui nascem os frutos medicinais e pimenta em muita fartura, já que os campos e bosques estão cheios dela; cortam-se em Maio, Junho e Julho. As árvores que dão a pimenta são plantadas e regadas como árvores domésticas. Aqui faz tanto calor que mal se consegue resistir, de maneira que se pegasse num ovo e o colocássemos em algum rio, em muito pouco tempo ficava cozido. Muitos mercadores vêm de Mangi, da Arábia e do Levante, trazendo e levando mercadoria nas suas embarcações.
Aqui existem animais muito distintos do resto do mundo, como sejam leões todos negros e papagaios de várias espécies, havendo-os brancos e tendo as patas e os bicos vermelhos, sendo muito belos de se ver; Também existem pavões e galinhas mais belas e maiores do que os nossos. Todas as coisas são diversas das nossas, não tendo nenhum fruto que se assemelhe aos nossos. Fazem vinho de açúcar muito bom. Possuem comércio de muitas coisas, excepto de trigo e aveia, que não possuem, mas sim arroz. Têm muitos sábios astrólogos. Esta gente é toda escura de pele e andam todos nus, homens e mulheres, menos nos seus órgãos genitais, que os tapam com um tecido lindo. Eles não consideram pecado qualquer luxúria e tomam por mulher a prima; quando o seu pai morre, podem casar com a sua mulher e também com a viúva do irmão. Estes costumes, na Índia, são comuns a todos.
Partimos daqui e iremos para uma região da Índia chamada Comari.”


De Cochim a Goa na companhia de “Palomar”
Por razões de tempo de voo, de ligações aéreas e de desejo de realizar uma viagem de comboio, o nosso itinerário teve um percurso pouco linear. Talvez o desejo de cubicar os fragmentos da percepção a isso nos tenham levado?
O primeiro contacto com a Índia do sul da costa ocidental começou em Cochim (Forte Cochim). Só depois fomos para Goa. De Goa regressámos novamente a Cochim mas, desta vez, de comboio. 
Nesses períodos de deslocações mais longas, algumas páginas do livro que levámos para esta viagem tiveram a sua oportunidade. Assim, na companhia de “Palomar” (1983), de Italo Calvino, fomos saboreando a simplicidade com que as suas palavras condensam fragmentos de faces que encontram outras contíguas e opostas e entre elas se ligam em arestas.
Entre muitas escolhi um fragmento da parte 2 “Palomar na cidade”, no ponto 2.2 “Palomar vai às compras”, no episódio 2.2.2 “O museu dos queijos”, página 79 na edição da Teorema:
A casa dos queijos representa para Palomar o mesmo que uma enciclopédia para um autodidacta; poderia memorizar todos os nomes, tentar uma classificação de acordo com as formas (…) de acordo com a consciência (…) de acordo com as matérias estranhas misturadas com a casca ou com a pasta (…) mas isso não o aproximaria um só passo do verdadeiro conhecimento, que reside na experiência dos sabores, feita de memória e de imaginação em conjunto, e só na base dessa experiência poderia estabelecer uma escala de gostos e preferências e curiosidades e exclusões.
Por trás de cada queijo está um prado de um distinto verde sob um distinto céu: prados incrustados pelo sal que as marés da Normandia depositam em cada entardecer; prados perfumados por aromas, ao sol ventoso da Provença; estão distintos rebanhos, com as respectivas estabulações  e transumâncias; estão segredos de preparação transmitidos através dos séculos. Esta loja é um museu: ao visitá-lo, o senhor Palomar sente, tal como no Louvre, que por detrás de cada um dos objectos expostos está a presença da civilização que lhe deu forma e que dele toma forma.


De Goa à província de Karala 
Munnar quer dizer três rios e há muito sândalo e animais. 
Kerala quer dizer terra dos cocos.
Aqui, contrariamente à zona do Rajastão, não se encontram grandes palácios das épocas imperiais que atestam o forte sistema de castas sentido nas regiões quentes e secas do norte. A actividade agrícola por todo o lado, das montanhas densamente arborizadas aos arrozais e actividades piscatória tudo ajudará a distribuir de forma mais generalizada o sustento mínimo. 
As imensas plantações de chá, as especiarias diversas, os frutos em abundância e a exploração da árvore da borracha são algumas das riquezas que aquele clima propicia em abundância.
A alimentação generalizada é “vega” e as bebidas alcoólicas só são servidas em reduzidíssimos restaurantes. As lojas que as vendem, na maior parte dos sítios que visitámos nesta região, estão discretamente localizadas. 
Se na indumentária das mulheres não encontrámos grandes diferenças em relação ao norte da Índia, aqui no sul, o “dhoti” é a roupa masculina mais usada pelos homens. 
O “dhoti” ainda é especialmente comum entre os homens do sul da Índia; no estado de Kerala, um tipo de “dhoti” chamado de “mundu” é muito popular.
Um pedaço de tecido (uns 4-5 metros), que enrolam à cintura, como uma saia. Às vezes, sobretudo quando estão a trabalhar, passam o tecido por entre as pernas e amarram-no à cintura, aparentando uns calções. 
O “dhoti” tem vários outros nomes em diferentes regiões da Índia. Na maioria das fotografias de Mahatma Gandhi, ele aparece de “dhoti”. Supostamente ele adotou o “dhoti” como símbolo de orgulho nacional durante a luta pela independência, depois de ver os homens da cidade de Madurai, no sul da Índia.

Comem de forma muito rápida, usando uma só mão e, no final da refeição os dedos usados quase que estão limpos. Não usam guardanapos nem talheres para comerem.
A comunidade cristã e muçulmana parece que absorveram aquela tranquilidade que atribuímos aos hinduístas. Como noutras regiões do oriente, a forma generalizada como conduzem é muito pouco regrada e orientam-se como se andassem a pé. O apito constante assinala que estão presentes e nele condensam as eventuais irritações que possam sentir. Nenhuma manifestação de desagrado ou de violência é manifestada por gestos ou palavras, apenas detectámos o acender das luzes dos faróis como exibição silenciosa de alguma repreensão. 

Neste rememorar da viagem, quando aquilo que se leu já passou a ter o sentido que os sentidos guardaram, recordei a informação recolhida no Museu Indo-português de Cochim que referia as alterações na zonas costeiras daquela região ocorridas depois das inundações de 1341 no rio Periyar. Essas modificações foram importantes porque criaram um sistema de proteção natural aos navios durante as monções. 
Ocorre-me agora tentar imaginar que, aquilo que Marco Pólo presenciou, no século XIII, já não foi aquilo que os navegantes portugueses encontraram nos finais do séc. XV. As inundações no rio Periyar facilitaram em muito a proteção dos navios que ali aportavam. Esse factor, entre outros, determinou que Cochim tivesse sido a capital dos portugueses  até 1510, quando os portugueses elegeram Goa como capital.
Aqui também morreu e foi sepultado Vasco da Gama.

O tempo do regresso ou dos pedaços de “memória e de imaginação”
De regresso, e agora na terra onde Vasco da Gama nasceu, contemplo esta baía e penso em Palomar e no seu “Museu dos Queijos”.
E agora, que de regresso estamos, desta tão desejada e, por vezes, incompreensível procura do que resta de um nós, nos despojos dos idos séculos e nas lonjuras deste pequeno planeta, na procura de descobrir os descobrimentos e tentando que, as faces perdidas se encontrem num cubo sedento de ser sólido geométrico. 
Nesse ambicionado volume o desejo de que se esvaia a inóspita  linearidade e a árida superfície que tanto teimam em vingar na esfera humana, essa que, apesar de ser um sólido geométrico, não tem faces nem arestas que materializem as opostas e belas  diferenças. 

Apesar de não ser possível vermos todas as faces de um cubo em simultâneo, ele desafia-nos a escolher aquela face que nos dá o ponto de vista que materializa a nossa realidade, mas essa, se inserida num sólido geométrico, tem a proteção das opostas e das contíguas a ela ligadas. Essas opostas diferenças amparam-na para não deixar de ser parte de um cubo e ancora-nos para não nos encalharmos em realidades planificadas e limitadas a existência linear e de superficialidade. 
Por isso não é nada fácil a realidade em nós ser construída em cubo e essa é a aventura de  viajar a tentar cubicar a esFERA.

Abrir as malas e aquela inicial fragrância interrogativa me perfumou os pensamentos: Será que o cubo tem espaço para o apreço e a esfera para o apresso?
Belas são as interrogações que alimentam a procura.
Viajar é preciso porque o globo é mesmo uma grande esFERA e as faces do cubo andam perdidas em limitadas superfícies.


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